sábado, 16 de agosto de 2014

COLLASUYU RECUPERADO - A Revolução Indígena nos Andes


Dezembro de 2005 marcou a eleição presidencial do líder cocalero da etnia aymara Evo Morales à presidência da Bolívia. Essa eleição foi tão simbólica que foram realizadas três cerimônias de posse diferentes: a primeira ocorreu em Tiahuanaku, na antiga cidade sagrada qolla – ou aymara – e contou com todo o aparato ritual aymara: uso do chunco (poncho sagrado), pés descalços, bastão dourado, adorno de cabeças de condores e o tradicional juramento a Pachamama (Mãe Terra) e a Tata Inti (Pai Sol). A segunda cerimônia realizou-se em La Paz, no Congresso Nacional, onde também a simbologia aymara foi utilizada quando Evo pediu um minuto de silêncio em homenagem aos heróis caídos em tantas batalhas pela América explorada. Por fim, a última ocorreu na Praça de San Francisco em contato direto com o povo boliviano.

Muitos militantes aymara consideraram a eleição de Evo um fato bastante positivo na trajetória das lutas aymara. Nas linhas de um projeto de REVOLUÇÃO ÍNDIA, bem organizado e consciente, que defende a recriação do Qollasuyu, o espaço qolla (ou aymara) de antes da chegada dos europeus.

Tal projeto inicia-se a partir de um documento importante que marca a luta em função da criação de um novo Estado, o Qollasuyu, publicado em 18 de dezembro de 2002, por ocasição do Primer Encuentro Indígena, realizado em Cuzco. Nele, os aymara desconhecem a autoridade de países como Bolívia, Peru, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai, posto que para eles são apenas terras roubadas dos povos originários e batizadas como “Repúblicas”. Da mesma forma, dentro desses países deve-se desconhecer estados, províncias ou departamentos e adotar a divisão administrativa baseada em ayllu, marka, laya e suyu, do período pré-colonial. Para ser cidadão qollasuyano é preciso exercer uma função que se volte ao benefício de todos, aprender a falar pelo menos três idiomas (sendo ao menos um indígena) e apresentar um sinal cultual qollasuyano, embora seja possível também para um estrangeiro nacionalizado.

Tal cidadania não é estática, ou seja, também deve ser construída:

Artigo 23 – Todo quollasuyano está obrigado à educação integral com base na nossa cultura, ciência e tecnologia próprias e à utilização da ciência e tecnologia ocidentais para nossos interesses, às quis deve ter acesso principalmente a partir da família na língua indígena e, posteriormente, em outros idiomas ou REGIME CULTURAL DO QOLLASUYU.

Também estabelecem símbolos do Qollasuyu, como a wiphala (bandeira quadriculada) e outros, tais como puma, jaguar, ankonda , folhas de coca, o hino “El Condor Pasa”: o jilaqata para o ayllu, malkus para a marka, kuracas para a laya e kinkas para o suyu; ficando também marcadas as autoridades: as autoridades têm a obrigação de possuir família, experiência e honestidade e, fundamentalmente, a trabalhar:

Artigo 43 – Cada qollasuyano está obrigado a trabalhar rotativamente no altiplano, bem como no vale, yungas, selvas e, inclusive na costa, distribuindo seu tempo de trabalho por meses e por anos. Também atuarão um tempo em trabalhos manuais e, em outros momentos, em trabalhos intelectuais, tanto no campo quanto na cidade. Ninguém pode estatizar-se em apenas uma forma de trabalho.

Isso merece uma pequena reflexão: em primeiro lugar, remetendo a uma antiga obrigação das comunidades – ayllus – do império inca, de enviar colonos a todos os outros pisos geológicos – litoral, vales, altiplano – para complementar sua economia. Eram os chamados Mic Mac, que periodicamente trocavam produtos com os ayllus de origem, numa economia de complementaridade. Outro aspecto levantado é que as atividades de cada pessoa devem se alternar entre trabalhos manuais e intelectuais sem que haja uma concentração em um só tipo de trabalho. Essa preocupação aparece também na criação de escolas e universidades aymara, conforme discutiremos posteriormente. Tal percepção busca criar cidadãos o mais semelhantes possível entre si e é uma tese que já foi muitas vezes retomada por pensadores marxistas e, de certa forma, embasou a visão de Mariátegui, a caracterizá-la como “comunismo inca”.

Ao mesmo tempo em que os aymara tentam criar o Qollasuyu, precisam combater o “modo estrangeiro de ser”, seus símbolos, forma de administração política, heróis nacionais, sistema educacional, etc, e, caso não seja possível, deve valer-se de todos os recursos possíveis para resistir e usar a favor da “República Indígena” o conhecimento adquirido do estrangeiro. Aqui encontramos uma citação surpreendente, pois é a corporificação daquilo que James Scott chama de “off stage”, ou seja, é um discurso oculto que, como poucas vezes acontece, torna-se explícito assumido enquanto estratégia de luta, sem se preocupar em ser descoberto:

Artigo 55 – Se ao qollasuyano for imposto, pela força e ameaças, leis neoliberais, nacionalistas e colonialistas em geral, deve simular sua relação com eles, para depois usar o dinheiro, a infraestrutura e os projetos para em nossos interesses de independência e soberania; também deve converter o Salão Provincial em um poder local para restaurara a laya e estabelecer contato com outras layas para, paulatinamente, consolidarmos a República originária e indígena.

Esse documento é bastante rico para nossas reflexões, a Revolução Índia explicita as táticas de resistência que devem ser implementadas até sua vitória final:

Artigo 58 – Devemos nos inserirmos entre os alto oficiais do Exército, na cúpula da igreja, nas altas chefaturas dos partidos políticos, nos altos cargos das instituições de Estado e governamentais, para nos informarmos da política colonialista do Estado boliviano, e, com essa informação e experiência, devemos avisar sobre o perigo eminente contra os indígenas do campo e das cidades.

Trata-se de utilizar todas as estruturas da sociedade branca contra ela mesma – inclusive a Internet – penetrar em todas as instituições: Exército, Igreja, Partidos Políticos, Instituições Estatais, Parlamento, governo etc e, se possível, assumir a presidência. A citação anterior chega a ser chocante por sua sinceridade e, de certa forma, retoma a linha de análise de Edward P. Thompson ao falar da “turba” que enfrenta a Economia de Mercado na Inglaterra do século XVII, mas que agora rompe com o discurso oculto que James Scott analisou, partindo para um projeto explícito de enfrentamentos, revolucionário.

E ainda o projeto do novo Estado prevê quase toda forma de ação militante

Artigo 59 – Toda mulher casada, solteira, divorciada, abandonada e viúva deve ter mais que quatro filhos, para manter viva a nossa população, cultura e território, e deve lutar contra toda política de controle da natalidade, clube de mães, alimentos transgênicos e outros que só buscam reduzir e exterminar a população indígena, para possibilitar migrações européias, e apoderarem-se do nosso território e usufruir nossos recursos naturais.

Há aqui um importante elemento de mobilização de identidades que se radicaliza e que vale a pena ressaltar: se a atuação sindical via CSUTCB foi muito importante na luta camponesa e aglutinou como um guarda-chuvas outros movimentos sociais da sociedade boliviana, como anteriormente na metade do século passado havia realizado a COMIBOL, agora no século XXI a etnicidade ressurge como uma força mobilizatória talvez nunca vista antes na história latino-americana, pois o que impressiona é que os próprios atores tem clara noção da força de seu movimento:

É evidente que nos últimos tempos se tem acontecido um crescimento qualitativo importante dos Povos e Nações originários do continente. Creio que os vários povos indígenas, hoje em dia, nos diferentes Estados e Nações dessa região – sua presença é inegável – nos tornamos atores fundamentais dentro das sociedades nacionais. Estamos e estaremos sempre presentes. (MACAS & YATIYAWI, 2007)

Cientes de sua força política no momento atual, os aymara defendem a interculturalidade como forma de convivência com outros povos e nações:

Ao falar de interculturalidade, é preciso reconhecer que as culturas que se encontram têm a mesma força e o mesmo valor: a moderna e a indígena.
Se se pretende apenas ensinar às crianças dos povos originários as idéias ocidentais em nossas línguas maternas, é um grave erro, que está condenado ao fracasso (...) Mas se vamos falar de interculturalidade, o primeiro passo é acercamo-nos da nossa cultura, vê-la a partir de nossos olhos, aprender a respeitá-la para, depois, mostrar a outra, podemos estar seguros e sem o menor medo em aceitarmos o que há de positivo nela, a fim de continuarmos a levar a vida... como sempre a levamos.

A Revolução Índia parte do pressuposto que se deve re-indianizar os aymara que foram influenciados pelos costumes brancos e, a partir daí, seguros de sua cultura, eles poderão partir para uma convivência com as outras, inclusive a branca, mas contanto que a diversidade seja respeitada, algo que não aconteceu nem no período colonial e nem no processo de constituição da república boliviana. No futuro isso deverá ser diferente:

Outro elemento fundamental em que devemos ter clareza no processo da interculturalidade é que os valores, princípios, conhecimentos, sabedoria de nossos povos não devem ser apenas recuperados e arquivados, mas devem ser oferecidos como uma contribuição de nossos povos à sociedade em seu conjunto, como elementos substanciais para um planejamento alternativo.

Eles estabelecem passos a serem cumpridos até que a interculturalidade se torne realidade. Num documento discutido num evento realizado na Guatemala em 2007 – o II Encuentro Continental de Pueblos y Nacionalidades Indígenas de Abya Yala –, foi inclusive traçado um calendário de atividades e objetivos a serem alcançados. A previsão da Revolução chega a ser exagerada, com datas previstas para cada evento ocorrer pelos próximos cem anos, ou seja, até os 600 anos da chegada de Colombo ao continente. Comentemos brevemente essas fases, com a máxima fidelidade ao texto original:

De 1992 a 2002, realizou-se o início do Pachacuti – a nova era – através de reflexões acerca do colonialismo europeu e dos Estados Nacionais latino-americanos, promovendo a re-emergência dos movimentos nacionais indígenas; de 2003 a 2007 deu-se a reaproximação entre diferentes povos de culturas originárias, criando-se espaços de articulação entre eles; de 2008 até 2012 é o tempo de se criar uma proposta de transição histórica, de criação de uma sociedade intercultural; entre 2013 e 2017 deverão começar a ser postos em prática projetos integrados para transformar estruturalmente a nova sociedade e combater o modelo econômico dos Estados Unidos; de 2018 a 2022 deverá ocorrer o fim do “sistema colonial republicano”, assim como dos Estados Unidos em prol de regimes pluralistas que, supomos, devem ser os de respeito à individualidade de nações originárias; de 2023 a 2027 haverá a emergência dos Estados Andinos e de sociedades interculturais no resto do continente; de 2028 a 2032 haverá a eliminação de antigos resquícios de práticas sócio-culturais da colônia; de 2033 até 2042 surgirão os novos estados do novo continente, o TAWA INTI SUYU e de novas correntes econômicas mundiais, embora eles não especifiquem o que sejam elas; de 2043 a 2092 ocorrerão as comemorações por cem anos de progresso comunal – partindo do marco que foi 1992 – e a crise do sistema de economia de mercado.

Mas a Revolução não termina nesse período, e as previsões se estendem até o século XXV:

De 2093 a 2142 – fim da era cristão, e processo de reconfiguração cultural nos diferentes hemisférios do planeta. Eclosão em massa de novas sociedades de economia sustentável.
De 2143 a 2192 – Eliminação total das injustiças sociais.Processo de conversão tecnológica. Reversão progressiva dos níveis de contaminação ambiental. Celebração dos 200 anos de trânsito favovável do Pacha Kuti.
De 2193 a 2492 – Auge das tecnologias saudáveis e equilíbrio ambiental; paz e justiça social entre os habitantes desse planeta; harmonia espiritual.
Em 2493 – Início da exploração e aproveitamento de novas jazidas e recursos naturais em planetas próximos. Evitar o surgimento de novas tecnologias que provoquem um risco de extinção de muitas formas de vida e formas de poder que nos conduzam ao desequilíbrio social.
PROPUESTA GEOPOLITICA TAWAINTISUYU ABYA YALA
COMUNIDAD QOLLASUYU TAWA INTI SUYU, 09.10.2006 19:08

Vejamos, portanto, o radicalismo do projeto revolucionário, prevendo o fim da era cristã, das injustiças sociais, das tecnologias perniciosas ao meio ambiente e a emergência de um mundo de harmonia social e espiritual. Ou seja, o projeto supera em muito as formas de resistência estudadas por muitos autores, que deixou de ser implícita para vir a público com um verdadeiro cronograma de atuações bem planejadas que já se encontram em realização.

A preocupação com o estabelecimento de um cronograma tão pormenorizado, a nosso ver, não deve ser nem tão exaltada e nem beirar o completo desprezo. É, sim, causa de reflexão: se os aymara não se importam em divulgar esses dados é porque têm noção de que a Revolução Índia só poderá ser feita a longo prazo, a partir de um processo que compreende uma imensa variedade de lutas, tais como de ações de resistência contemporânea, corporificadas em ações diretas de cercamento de cidades, colocação de pedras em rodovias, transmissão de mensagens de madrugada de porta em porta, de associação com outros segmentos da sociedade boliviana em questões pontuais, como foi o caso da Coordenadora de Água e Vida, em Cochabamba, no ano de 2000, a deflagração de um projeto consciente de re-indianização de aymaras mais jovens que, geralmente, migraram do campo para as cidades e abandonaram antigos rituais. Entretanto, tais ações não abandonam a ótica da ação política, ao lutar-se por cargos nas eleições nacionais bolivianas e pela implantação da nova constituição boliviana.

Trata-se de uma luta que vem colhendo vitórias e propondo a construção de um Estado Multinacional com conceitos novos e defesa de nacionalidades:

A Antropologia é uma falsa ciência, criada pelo colonialismo britânico, e seus fundadores, todos eles senhores colonialistas, estudavam os povos oprimidos como se estuda os macacos da selva.
Os Malinovski nas Ilhas Trobiand; os Radcliffe Brown, os Evans-Pritchard, com os Nuer de Birmânia; os Firth entre os Tikopia, etc, etc, nos estão mostrando qual é o caráter dessa pseudociência, construída para estudar os “selvagens” como primitivos mas não como colonizados, enquanto a Sociologia é a ciência que estuda aos povos “civilizados”, mas não como colonizadores.
Nada de “etnias”! Trata-se, na Bolívia, de nações e nacionalidades originárias e indígenas que tem proclamado claramente sua autodeterminação de criar um grande Estado Multinacional de Nova Democracia. (ALVARADO, 2009)

Portanto, acompanhar a luta aymara nos permite analisar como as suas propostas podem ser inovadoras ao mesmo tempo em que remetem constantemente a um passado milenar:

Ontem se tornou visível a Assembléia Legislativa Plurinacional. Representantes dos afrobolivianos, indígenas, militares, empresários, operários, mineiros, da classe média e intelectuais receberam suas credenciais, que os habilitam a iniciar uma tarefa inédita: refundar e projetar um novo Estado.
As credenciais também foram entregues, através do Órgão Eleitoral Pluninacional – OEP, no meio de uma festa democrática, aos reeleitos presidente Evo Moares e vice-presidente Álvaro García Linera.
O auditório do Banco Central da Bolívia foi o cenário em que se reunirão, pela primeira vez depois de sua eleição, a Assembléia completa, que substitui o Congresso. Às 09:32h, Morales começou seu discurso com uma saudação ao fato histórico, tornando patente tratar-se de uma etapa de “transformações profundas da reconstrução da Bolívia”.
‘Na Bolívia, continuamos fazendo história, continuamos escrevendo uma nova história, mas com o povo boliviano como sujeito. É a democracia!’, disse ele.


Texto de Celso Gestermeier do Nascimento

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