domingo, 17 de agosto de 2014

A OUTRA FACE DE JOSÉ DE ANCHIETA...

Como acontece com a grande maioria dos países, na contemporaneidade, o Brasil é um país construído a partir de processos de hibridismos culturais: o português, o banto, o suruí, o tembé, o japonês, o italiano, o alemão, o ribeirinho, o caboclo, o caiçara... Lamentavelmente e “naturalmente”, a história, desde 1500, é contada apenas pelo foco narrativo de quem estava no poder. Do início da colonização européia até os nossos dias, a história viveu e vive sob a ditadura do olhar do colonizador e da palavra escrita ocidental, européia, branca.

Não é possível pensar, no entanto, que existiu um único sujeito particular que planejou o sistema colonial. Nem mesmo uma única instituição ocidental pode ser responsabilizada individualmente. O colonialismo europeu, tanto na América como em outras partes do mundo, se impôs a partir de uma multiplicidade de interesses. Os Estados europeus, com seus exércitos e seus anseios de se tornarem impérios, as grandes empresas que começavam a surgir e desejavam abrir novas frentes de exploração econômica e a Igreja Católica com o objetivo de aumentar o rebanho de Deus são alguns dos mais visíveis fatores que impulsionaram as práticas coloniais. E cada uma destas instituições, com suas práticas sociais, foi fundamental para que a ordem discursiva da colonização européia se estabelecesse na América.

A participação da Igreja Católica foi efetiva no processo de colonização da América. Em muitos momentos, inclusive, foi decisiva sua atuação entre as sociedades indígenas. Não por acaso, a primeira atitude dos comandantes, quando tomavam posse das novas terras, era mandar rezar a “primeira missa”. São fartas as narrativas sobre estas primeiras missas e há muitos quadros pintados sobre elas. Estas referências são frequentemente citadas nos livros de história como o marco inicial da colonização.

Várias ordens religiosas intermediaram a relação das sociedades indígenas com o Estado, a princípio o português e depois o brasileiro. A maneira como os religiosos se comportaram ao logo destes séculos é bastante variável. Se por um lado houve e há religiosos comprometidos com a causa indígena, por outro, a ação da grande maioria foi e é no sentido de alterar as tradições indígenas e estabelecer uma nova ordem discursiva, onde não há espaço para os rituais religiosos indígenas e a atuação dos pajés continua sendo intensamente coibida.

Ainda que na prática a Igreja Católica tenha em muitos momentos da história colonial se afastado dos ideais de justiça social, o cristianismo sempre colocou em circulação discursos relacionados à humildade, à igualdade entre os homens. A forma violenta como o sistema colonial se impunha era, por isso, contraditória em relação a estes ideais. A ação da Igreja no processo de colonização não se justificava apenas pela conquista de novas terras, como acontecia em relação aos Estados europeus.

No século XVI, os genocídios praticados pelos espanhóis, na América, começaram a ser denunciados na Europa por alguns religiosos que cumpriam o papel de defensores da justiça social cristã, como foi o caso do incansável Frei Bartolomeu de Las Casas. Tanto os reis de Castela, quanto o Papa foram obrigados a se pronunciar sobre a questão. Mas, a própria Igreja se incumbiu de encontrar justificativas para as chacinas promovidas pela violência da colonização. Profanos, infiéis, idólatras, ateus. Quem não se convertesse merecia o peso da mão do colonizador. Eduardo Galeano explica (1983: 25):

Entretanto, alguns teólogos protestaram e a escravização dos índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico ‘Requerimiento’ que os exortava a se converterem à fé católica: “Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneiras que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos vendereis, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”

Este Requerimiento, um texto escrito, lido em uma língua desconhecida para os índios, efetivava o poder da palavra, pois ainda que não conhecessem a língua, o que acontecia depois era bastante evidente. Podemos interpretar este documento como uma metáfora da colonização, que era escrita, cristã e justificavelmente violenta. A Igreja se valeu deste dispositivo para justificar seu apoio à violência colonial. Afinal, que direitos poderiam ter pessoas que não aceitavam Deus e se negavam a obedecer ao mando real?

Em relação à escravidão dos índios, a Igreja também precisava de justificativas. Os religiosos se valeram das determinações papais que haviam resolvido a questão da igualdade social em relação às sociedades africanas, estas determinações estabeleciam que o “negro” não era considerado gente para a Igreja Católica. Diante das incertezas sobre as populações da América, para aprovar as atitudes colonizadoras, os religiosos se valeram deste artifício e passaram a chamar os índios de negro. Então, é comum encontrar em textos jesuíticos do século XVI a palavra “negra” sendo usada para se referir aos índios. As pessoas que formavam as sociedades africanas eram consideradas animais e os jesuítas colocavam os índios nesta mesma categoria. No fragmento a seguir do “Diálogo da Conversão do Gentio”, a palavra “negro” se refere a “índio” e aparece também a relação com os animais:

Não há homem que em toda esta terra, que conheça estes, que diga outra cousa. Eu tive hum negro, que criei de pequeno. Cuidei que hera boom chrsitão e fugiu-me pera os seus: pois quando aquele não foi boom, não sei o que seja. Não hé este que sôo me faz descomfiar destes serem capa do bautismo, porque não fui eu sôo o que criei este corvo; nem sei se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos tomados no ninho secrião se amasão ensinão e estes mais esquecidos da criação que os brutos animais e mais igratos que os filhos das biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação que se faz neles. (NÓBREGA: 2006, 6-7)

No início do século XVI, alguns discursos bastante estabilizados entre nós ainda se encontravam instáveis. O significado de palavras como negro, escravo, índio, liberto, forro ainda não tinham seus sentidos definidos. Para justificar muitas de suas atitudes, sem nenhum pudor, a Igreja, para fugir da condição de anti-cristão, chamou os índios de negros.

A Igreja tinha por princípio catequizar as almas dos gentios e pelo menos simbolicamente, este processo não poderia ser violento, a menos que muito bem justificado. O ethos discursivo do religioso está relacionado à bondade, à humildade, diferente do que acontecia em relação aos navegadores, aos soldados, aos governadores, cuja imagem associada à violência figurava como uma característica bastante positiva, já que era necessário aterrorizar os índios para que eles não oferecessem resistência.

O ethos implica, com efeito, uma disciplina do corpo apreendido por intermédio de um comportamento global. O caráter e a corporeidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apóia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las. Esses estereótipos culturais circulam nos domínios mais diversos: literatura, foto, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU: 2000,99)

O colonizador e o religioso chegaram juntos, fazem parte do mesmo processo. É até bem coerente afirmar que os religiosos também eram colonizadores. Mas aos olhos das sociedades indígenas, havia uma grande diferença entre os padres e os militares e colonos. O olhar dos índios foi o fiador destes ethos discursivos construídos pelo Ocidente. Eles não recebiam da mesma forma militares agressivos, usando uniformes, com botas imponentes, armados, montados em cavalos, da mesma forma que recebiam aqueles homens de aparência angelical, de fala macia, usando sandália, com olhar de acolhimento.

O corpo dos jesuítas tinha uma atitude diferente. Eles demonstravam interesse pelas línguas e pelas culturas nativas. Chegaram à América trazendo a música erudita, significativo elemento de atração para índios, cujo cotidiano era embalado pela música e pela dança. Não, à toa, estes religiosos conseguiram entrar no universo indígena sem muitas dificuldades a princípio. Eles promoveram diferentes gestos de interpretação no olhar nativo, por isso não podiam ser percebidos da mesma forma que os outros colonizadores.

O início da colonização não foi tarefa simples para portugueses e espanhóis. Era necessário encontrar formas de se relacionar com as sociedades indígenas, sem que necessariamente tivessem que exterminar todos os índios. Eles precisavam de mão-de-obra na América e viver em estado de guerra encarecia a colonização e diminuía os lucros. Para efetivar este projeto colonizador, teve papel fundamental uma nova ordem religiosa, fundada em 1534, por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus. Esta nova congregação católica tinha um objetivo claro: instituir a fé cristã como uma ordem discursiva, submetendo as sociedades colonizadas à religião católica e aos reis europeus através da ação missionária voltada para educação. Não por acaso esta congregação foi tão fortemente apoiada pela Corte portuguesa e encontrou nas escolas fundadas em Portugal seu principal centro irradiador de novos jesuítas.

Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, eles se valeram de uma tecnologia discursiva sofisticada de impor a sujeição aos povos colonizados. A Igreja Católica já havia protagonizado em outras colônias espanholas e portuguesas a ação da catequese, que necessariamente passava pela disciplinarização do corpo. Isso incluía agregar os índios em missões, onde eles passavam a levar uma vida sedentária, sob o controle da Igreja, ficando assim dependentes dos favorecimentos dos religiosos. Nestas missões, a Igreja impunha novas regras de condutas que incluíam a monogamia, o hábito de freqüentar escolas e a introdução de um novo cardápio alimentar. No trecho seguinte, em uma carta enviada à Companhia de Jesus, Nóbrega deixa bem claro os objetivos destes religiosos em relação aos índios:

A lei, que lhes hão-de-dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos, fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes padres da Companhia para os doutrinarem. (SERAFIM LEITE: 1954, p. 153)

Em relação à interferência na vida religiosa, uma das estratégias mais eficientes consistia em ridicularizar os princípios religiosos tradicionais, condenar a ação dos pajés e estabelecer a confissão como condição para a convivência com os religiosos.

Para colocar em prática seus objetivos, os jesuítas se dedicaram a uma pesquisa minuciosa entre os índios Tupinambá. Procuraram conhecer sua língua, sua organização social e religiosa para poder agir com mais propriedade entre eles. Eles fundaram as primeiras escolas, escreveram as primeiras gramáticas e os primeiros dicionários das línguas indígenas.

Esta nova ordem discursiva, que começou a ser instituída pelos jesuítas, ainda hoje continua se estabelecendo nas fronteiras da Amazônia com outras organizações religiosas. É uma recorrência que a partir do encontro com as igrejas os índios passem a depender de muitos favorecimentos dos religiosos, quer seja da busca de proteção para as invasões inimigas, para a obtenção de alimentos, para conseguir assistência médica, em função de não dominarem as doenças trazidas pelos não-índios, para receber como presentes os artefatos culturais que passavam a fazer parte do cotidiano ou mesmo porque a doutrina cristã, de alguma forma, encontra e encontrava espaço de diálogo com o self religioso de algumas sociedades indígenas.

Na primeira metade do século XVI, a colonização portuguesa enfrentou muitas dificuldades para ocupar o território brasileiro e “civilizar” seus moradores nativos. Ecoava também na América a guerra religiosa promovida pela Reforma Protestante e pela Contra-Reforma da Igreja Católica. A ameaça dos calvinistas franceses, perseguidos pela Contra-Reforma era constante, eles mantinham relações amistosas com os índios e pretendiam fundar no Brasil um país em que pudessem ter liberdade de religião. Foi somente em 1532 com a chegada de Martim Afonso de Souza que começou efetivamente a colonização do Brasil. Mas as primeiras iniciativas da Corte Portuguesa não resultaram na ocupação efetiva de um território tão extenso. A presença da Igreja Católica no Brasil representava uma estratégia dos europeus para transitar entre as sociedades indígenas sem guerras, mas também traduzia a preocupação do Vaticano em relação aos franceses no litoral brasileiro.

Os jesuítas José de Anchieta, Antônio Nóbrega e Antônio Vieira, filhos da Contra-Reforma, são alguns dos maiores expoentes da igreja católica no Brasil. Estes religiosos foram considerados protetores dos índios e a própria Igreja se incumbiu de divulgar este ethos pelo mundo inteiro. Os três ainda hoje são respeitados por sua produção literária, além de religiosos eram muito cultos, chegavam a ser eruditos. Mas estes três jesuítas foram decisivos no processo de reconhecimento e apagamento da história dos índios. Eles não são lembrados porque tenham dado voz a uma memória indígena. Não, eles se destacaram pela catequese.

A produção literária destes jesuítas interferiu bastante na imagem que a sociedade brasileira, de forma geral, tem dos índios. A própria imagem deles se confunde com suas atuações entre os índios. Anchieta foi indicado para canonização em função do trabalho que realizou entre os Tupiniquim e Tupinambá. Também a ele se deve o primeiro estudo sistematizado e escrito de uma língua indígena no Brasil – “A Arte (gramática) da Língua mais usada na costa do Brasil”. O trabalho lingüístico realizado pelo jesuíta no Brasil teve como principal metodologia conhecer o léxico e os aspectos estruturais da língua falada pelos Tupinambá, para poder efetivar um trabalho de catequização entre eles.

Muito antes de Malinowski ou das modernas correntes teóricas dos estudos da linguagem, era bem claro que estar entre os índios e conhecer e manipular sua língua representava as condições essenciais à sua empreitada. Anchieta, além de ser um linguista primoroso, também se tornou um profundo conhecedor da cultura Tupinambá. Preocupou-se, precipuamente, em compreender as estruturas do pensamento religioso.

A gramática do enunciado jesuítico implica, portanto, mapear o tupi e capturá-lo com classes e categorias gramaticais do latim, do português e do espanhol. Ao inseminar na língua tupi a presença de uma alma católica proporcionada pela semântica substancialista de uma memória de culpa, a gramática também produz seu análogo sensível, o corpo dócil, ordenado em práticas prescritivas que o integram juridicamente como inferioridade natural. Lição da Política aristotélica: é próprio do inferior subordinar-se naturalmente ao superior. (HANSEN: 2005, p. 38).

A produção literária de Anchieta é bastante vasta e compreende poemas em latim, poemas em Tupi antigo, peças de teatro, uma série de cartas enviadas à Companhia de Jesus, entre outros. Aqui, vou tratar especificamente de um de seus poemas, “Dos Feitos de Mem de Sá”. Nele ficam bem evidentes as características do índio ideal aos olhos de Anchieta. O índio que ele se empenhou em inventar em sua literatura.

Com seus mais de três mil versos, este poema foi publicado pela primeira vez em 1563 para homenagear a vitória dos portugueses sobre a rebelião indígena que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios.

Em “Dos Feitos de Mem de Sá”, José de Anchieta, além de revelar o que pensava sobre os índios que resistiam à colonização, ovaciona as ações do governador Mem de Sá. Ele constrói dois ethos discursivos bem distintos, do governado como um grande herói e o dos Tupinambá como selvagens, animais e ferozes. O tom áspero do poema traduz a tensão que jesuítas, portugueses e Tupinambá viveram durante a Confederação dos Tamoios. Neste texto, Anchieta evidencia o que significava levar a conversão aos infiéis.

Ethos não diz respeito apenas, como na retórica antiga, à eloqüência judiciária ou aos enunciados orais: é válido para qualquer discurso, mesmo para o escrito. Com efeito, o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito. (MAINGUENEAU: 2000,98)

O fiador deste poema não eram os índios. O público a quem Anchieta queria atingir eram os portugueses, os europeus colonizadores. Dentre as principais condições de produção deste poema é importante assinalar que originalmente foi manuscrito em latim e tinha como objetivo a circulação imediata entre os portugueses que viviam no Brasil e na metrópole. O próprio Anchieta fez uma cópia do poema e entregou ao governador geral Mem de Sá.

Segundo alguns críticos literários, este seria o primeiro poema épico feito no Brasil. Sua estrutura segue o modelo clássico épico: há um herói, a forte presença da mitologia cristã e acontecimentos fantásticos a partir de fatos reais.

Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!
(ANCHIETA, 1958:12 )

Escrever, em latim, com a estrutura épica, já localiza algumas características da formação do jesuíta. Ninguém duvida de suas qualidades como linguista e como literato. Há uma farta literatura especializada que trata destes aspectos da obra de Anchieta. Mas aqui, interessa a posição discursiva do jesuíta. A narrativa épica de Anchieta, herdeira de Homero, foi escrita antes que Camões compusesse “Os Lusíadas”. Seu herói é mais parecido com Ulisses, o conquistador do que com Vasco da Gama, o navegador.

Todo o argumento se define a partir da oposição entre os entre os “heróis” e a “turba horrenda”. Anchieta constrói um discurso tão depreciativo em relação aos índios, que parece plenamente justificável o massacre promovido por Mem de Sá.

Anchieta era, de fato, um religioso da Contra-Reforma e esta condição aparece logo na “Epístola Dedicatória”. Fica bem clara a posição do jesuíta no poema. Ele faz uma crítica severa aos franceses:

15 Vês como de nada valeu a esses ninhos altivos de pedra
toda a estratégia das posições achadas. Inexpugnáveis embora à força humana as ameias erguidas pelo hábil francês no cimo dessa penha
(ANCHIETA, 1958: 47)
Bem diferente do discurso estabilizado sobre a resistência indígena, que fala em índios pacíficos, que não resistiam, a história dos Tupinambá, já no primeiro momento da colonização, mostra que eles não aceitaram pacificamente a dominação, tampouco nutriram profunda admiração pela cultura ocidental, como afirmam muitos autores. Estes índios eram corajosos guerreiros, que apoiados pelos franceses, promoveram, liderados por Ambirê e Guaixará, no litoral dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre 1554 e 1567, a Confederação dos Tamoios e levaram a guerra contra os portugueses às últimas consequências. As batalhas entre portugueses e os Tupinambá servem de inspiração para a construção do poema.

Os Tupinambá tinham consciência clara do que estavam em jogo durante as batalhas da Confederação dos Tamoios. Eles sabiam que sua liberdade e a hegemonia sobre os territórios dominados. Eles lutaram para não se submeter, mas Anchieta condena esta luta.

Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam aos cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
245 ameaçam agora a cabeça dos pobres colonos quais tigre cruéis em redor da preia lanhada sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
(ANCHIETA, 1958: 61)

Os Tupinambá queriam vingar seus guerreiros mortos pelo exército português e compreendiam o risco da presença dos portugueses no Brasil. A respeito do estado de ânimo dos Tupinambá, esclarece Florestan Fernandes (1963: 29):

[a] guerra contra os portugueses assumiu formas violentas, congregando todos os grupos tribais da região. O auxílio direto dos franceses e suas promessas formais de colaboração permanente tornaram-se também um incitamento muito significativo. O objetivo da guerra, do ponto de vista tribal, consistia na expulsão ou extermínio dos portugueses.

Quando se iniciou a guerra, os Tupinambá ameaçaram dominar os portugueses, que passaram a recuar estrategicamente. Foi a intermediação de Nóbrega e Anchieta, que ficaram meses como reféns entre eles, que permitiu aos jesuítas conhecer as estratégias de guerra dos Tupinambá. Com estas informações, ficou mais fácil ao exército português, comandado por Mem de Sá, aniquilar a resistência indígena.

No trecho seguinte, há uma inversão da história do que aconteceu na América entre os índios e os europeus. Os índios são apresentados como vilões. Parece que eles invadiram o Brasil e entrincheiraram a cultura cristã:

825 Essa raça selvagem, sem a menor lei, perpetrava
crimes horrendos contra os mandados divinos,
proferindo impunemente ameaças contínuas e altivos
discurso. Então, com arrogância o índio sanhudo
olhava para os cristãos e estes entrincheirados,
830 detrás de seus muros tremiam de pavor vergonhoso:
como quando lobos vorazes, que a fome impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam
à ronda do aprisco, espotejar os tenros cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que sugam;
(ANCHIETA, 1958:83)

No trecho seguinte, o índio é identificado com os animais irracionais:

(..) Podem os tigres viver sem a preia
e os leões ferozes deixar de espedaçar os novilhos
e os lobos perdoar as mansas ovelhas? Antes deixará a baleia
de encher de peixes o bojo no vasto oceano
956 antes deixará o gavião, em vôo audacioso librado no espaço,
de raptar tímidas aves, e a águia real de garras aduncas
de levantar as alturas em revoada a lebre cativa;
do que deixarem os brasis de devorar carnes humanas.
(ANCHIETA, 1958: 89)

No fragmento a seguir, do Livro II do poema, a forma como Anchieta se utiliza dos verbos atua no apagamento da história dos índios e constrói uma “verdade absoluta”, bem própria da história construída pela Companhia de Jesus:

Assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
1100 para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco a febre do impuro lhes devora as entranhas:
1105 imersos no lodaçal, aí rebolavam o fétido corpo,
preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.
 (ANCHIETA, 1958: 95)

Em sua sintaxe discursiva, Anchieta usa verbos no passado, que mostram como era a vida dos índios e verbos no presente, que retratam a nova realidade estabelecida depois que Mem de Sá venceu os Tupinambá. Esta escolha dos tempos estabelece uma nova discursividade. O jesuíta usa o presente omnitemporal ou gnômico. Para Fiorin (2001:150-151) isto acontece:

quando o momento de referência é ilimitado e, portanto, também é o momento do acontecimento. É o presente utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem como tais. Por isso é a forma verbal mais usada pela ciência, pela religião, pela sabedoria popular (máximas e provérbios)

“Eles eram”, depois de Mem de Sá, “eles são”: o trabalho de transformação está concluído. Nesta construção, não há escape para a nova ordem cristã estabelecida: “Assim se expulsou a paixão de comer carne humana”, acabou a antropofagia e a monogamia se estabeleceu como regra de conduta “Agora escolhem uma companheira fiel e eterna”.

O funcionamento discursivo do início da colonização, agenciado pela igreja, reprodutor do modelo das Cruzadas religiosas da Idade Média, em vários momentos da História, construiu duas categorias de ethos: o santo, que não pega em armas e aparece como uma figura cândida, (daí a imagem estabilizada que temos de Anchieta) e o herói, o líder militar, forte, quase imbatível, representado por Mem de Sá. No poema também se observa o ethos do índio ideal para Anchieta, aquele que se submeteu a Mem de Sá e que pode ser considerado humano. Quanto aos outros, são irracionais e não têm o direito de continuar vivendo.

Durante séculos, a Igreja Católica e o Estado português, seguido pelo brasileiro administraram nossos “gestos de leitura” em relação à catequese e à colonização. Colocaram em circulação suas próprias versões da história, que, ainda hoje, sem muita dificuldade, pode ser verificada nos livros, ou, para ser mais contemporânea, em qualquer busca no Google.

O índio não foi inventado sozinho. Para que a imagem do selvagem fizesse sentido, muitas outras também entravam em cenas. Na verdade, esta relação de dominação que aconteceu com as sociedades indígenas e com as sociedades africanas nos séculos XVI, ainda hoje continua se repetindo no Vietnã, no Iraque, na Faixa de Gaza, onde quer que existam pessoas querendo subjugar sociedades inteiras. Nestas situações sempre as invenções discursivas serão mais uma forma de violência contra os povos oprimidos. Em sua mais recente versão, costuma-se afirmar que o mundo mudou e que falar sobre dominantes e dominados é coisa do passado.


Texto de Ivânia dos Santos Neves

Nenhum comentário:

Postar um comentário