segunda-feira, 21 de abril de 2014

DA RESISTÊNCIA INDÍGENA

A história do Brasil começa oficialmente em 22 de abril de 1500, quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral ancorou na baía de Cabrália tomando posse destas terras em nome da Coroa Portuguesa. Oficiosamente, entretanto, o primeiro a descobrir o Brasil foi o navegador Vicente Yanes Pizon no ano de 1499. E como a história depende de documentos escritos, é também em 1500 que começa oficialmente a história dos índios que vivem no Brasil. História esta que já começa sendo contada pelos portugueses, pois os índios eram ágrafos.

O primeiro documento escrito relatando a existência dos nativos é a Carta de Pero Vaz Caminha a El Rey D. Manuel. A primeira referência de Caminha ao gentio da terra é a seguinte: “E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro”. O documento revela que antes mesmo de desembarcarem os navegantes tomaram conhecimento de que a terra era habitada. Em seguida, a Carta relata detalhadamente o desembarque e o primeiro contato entre e o europeu e o ameríndio.

O primeiro ato português constituiu-se, portanto, na primeira violência contra os povos que habitavam a terra. É claro que as nações indígenas não conheciam o conceito de posse legado aos portugueses pelos romanos, mas estavam há séculos ligados à terra de seus ancestrais. Niéde Guidon informa que a ocupação humana do Brasil data de mais de 12.000 anos, a população densa no nordeste de 8.000 anos. Depois de tanto tempo de ocupação do solo, pode-se concluir que os índios tinham direito natural à posse terra que habitavam.

Mas se os nativos desconheciam semelhantes sutilezas teóricas, os portugueses conheciam-nas muito bem. Logo, ao avistá-los poderiam concluir que aqueles homens tinham a posse da terra. Apesar disso desembarcaram sem pedir autorização e se assenhoraram do alheio. Como o ato de Cabral e seus marinheiros não encontra legitimação no direito natural pode ser equiparado a uma verdadeira declaração de guerra. No entanto, como a história foi contada pelos invasores segue-se que acreditamos que as coisas se deram de maneira muito diferente. Na verdade a história do Brasil é a um só tempo a história da guerra de conquista movida pelos portugueses contra o gentio da terra e da reação deste ao avanço do invasor ultramarino.

Na guerra vale tudo, principalmente a mentira. E os portugueses souberam empregá-la desde o início. Na sua Carta, Caminha informa El Rey que os índios “não lavram, nem criam”. Niéde Guidon relata que a agricultura é praticada no Brasil há 4.000 anos; em todo território nacional há pelo menos 2.000 anos. Portanto, ao contrário do que escreveu o cronista, os índios lavravam sim e há muito tempo. Através de inverdades como a registrada pela pena de Caminha os portugueses criaram a imagem do índio preguiçoso, indolente, desleixado, que ainda hoje combatemos. Foi assim que o europeu conferiu à sua guerra de conquista um caráter diferente: civilizatório. E agora que completamos mais de meio milênio de história desta guerra movida aos índios, chegou a hora de desmascararmos sua versão ideológica mostrando o que realmente ocorreu.

Além da mentira, os portugueses recorreram sistematicamente ao uso da força. Já em 24/02/1587 foi promulgada uma Lei tornando obrigatória a presença de missionários junto às [tropas] de descimentos. Tropas como? Se não estavam em guerra com os índios, porque os portugueses precisavam de tropas?

Os descimentos constituem um episódio importante da história desta guerra de conquista. Consistiam no deslocamento dos povos indígenas do sertão para aldeamentos junto aos portugueses. Aqueles que resistissem ao convencimento pacífico acabavam sendo conduzidos (descidos) a força. Segundo a legislação da época, as tropas só poderiam usar a violência em caso de guerra justa. Beatriz Perrone-Moisés informa que a recusa à conversão ao catolicismo, a prática de hostilidades aos vassalos de El Rey e quebra dos pactos eram motivos suficientes para a declaração de uma guerra justa.

Do exposto, pode-se concluir que a violência praticada pelos portugueses tinha duas faces. Uma pacífica, outra terrível.

O descimento e a conversão ao catolicismo eram quase compulsórios. Os índios deviam abandonar suas terras e tradições ou estas em virtude de abandonar aquelas. Assim, sob o epíteto de convencimento pacífico esconde-se a verdadeira face dos atos praticados pelos invasores. O descimento e a conversão privava os índios a um só tempo do seu espaço físico e da sua liberdade de consciência. E isto é sem dúvida alguma uma violência. Pacífica, mas sempre violência.

Os regulamentos determinavam que os aldeamentos deveriam preservar a unidade étnica. Tribos com línguas e culturas diferentes deveriam ficar em aldeamentos distintos. Como várias outras, esta norma nasceu morta. Desde o início os portugueses promoveram aldeamentos pluriétnicos, forçando tribos com diferentes línguas e culturas a conviverem num mesmo espaço territorial. Miguel Menéndez assevera que em 1716 uma parte dos índios Tora foi aldeada no Rio Abacaxis junto com contingentes de diversos grupos; em 1827 foi fundada uma missão na margem esquerda do Rio Madeira com índios Mura, Munduruku, Arara e Arupa. O aldeamento pluriétnico foi uma das maneiras mais eficientes que os portugueses – e depois os brasileiros – empregaram para destruir a identidade cultural dos povos indígenas a fim de dominá-los mais facilmente.

Caso reagissem, os índios teriam que enfrentar as tropas de El Rey. Neste ponto, devemos ressaltar a desequilíbrio militar que existia entre o invasor e o nativo. Quando aportaram em Cabrália, os portugueses já dominavam o aço e a pólvora. Os índios, por sua vez, empregavam armas de madeira e pedra. Assim, a superioridade bélica garantia a pacificidade dos descimentos ou a vitória esmagadora em caso de conflito.

A rapidez com que se deu o processo de colonização no Brasil demonstra como os portugueses foram eficientes ao eliminar seus inimigos. Aliás, como assinala Beatriz Perrone-Moisés: “Tudo leva a crer que muitos desses inimigos foram construídos pelos colonizadores cobiçosos de obter braços escravos para suas fazendas e indústrias”.

Os índios descidos pacificamente podiam trabalhar livremente para os portugueses e para as missões. Os índios aprisionados nas guerra justa eram reduzidos à condição de escravos e obrigados a servir os colonizadores. Mas as coisas não se deram exatamente como previsto nos regulamentos.

Beatriz Perrone-Moisés cita diversos textos legais promulgados para regulamentar o trabalho dos índios livres. Eles tinham direito a remuneração e a retornar aos aldeamentos após certo tempo de trabalho. Todavia, a autora esclarece que “a liberdade é violada, o prazo estipulado desobedecido e os salários não são pagos; há vários indícios de que os índios das aldeias acabavam ficando em situação pior do que os escravos: sobrecarregados, explorados, mandados de um lado para outro sem que sua vontade exigida pelas leis, fosse considerada”.

E por falar em missões, um dos maiores engodos da história do Brasil é o propósito religioso da colonização. As missões religiosas tiveram duas finalidades bem claras no processo de colonização. A primeira foi privar os índios de sua identidade cultural através da conversão facilitando o trabalho do colonizador. A segunda foi meramente econômica. Philippe Erikson esclarece que o quinhão das missões era estabelecido a partir do índice de fiéis convertidos e isto acarretava conflito entre as diversas ordens religiosas. Ao estabelecerem-se no Brasil elas tinham interesses claramente financeiros.

A economia foi a mola mestra de todo o sistema colonial, inclusive no que se refere à penetração religiosa. O sistema todo era muito simples. As tropas realizavam os descimentos liberando as terras para os colonizadores e fornecendo mão de obra livre e escrava para os interessados (leigos e clérigos). Os religiosos ajudavam a pacificar os índios através da conversão e ganhavam em decorrência desta e do trabalho dos indígenas nas missões. Os índios, estes sempre perdiam. Perdiam a terra, a cultura, a língua, a força de trabalho e a capacidade de reagir. E se reagissem perdiam a liberdade e a vida nas "guerras justas".

A propósito devemos desfazer um mal entendido. Como vimos, o colonizador considerava justas a guerras movidas às tribos hostis aos vassalos de El Rey. Entretanto, foram os portugueses que invadiram o Brasil e violaram o direito natural dos índios à posse da terra de seus ancestrais. Ao defender a integridade de seus territórios, os índios defendiam apenas o que lhes pertencia. Assim, as hostilidades que praticavam é que eram justas e não as guerras lhes movidas pelas tropas de El Rey. Mas o agressor é que definiu a guerra e escreveu a história de sorte que aprendemos o conceito de "guerra justa" tal como ele legou-nos.

Além da violência cultural e militar, a partir da chegada do europeu o gentio da terra teve que combater outros inimigos mais insidiosos: as doenças trazidas do Velho Mundo pelo colonizador. Manuela Carneiro da Cunha relata que. As epidemias são normalmente tidas como a principal agente da depopulação indígena. A barreira epidemiológica era, com efeito, favorável aos europeus na América e era-lhes desfavorável na África. Na África os europeus morriam como moscas; aqui os índios é que morriam: agentes patogênicos da varíola, do sarampo, da coqueluche, da catapora, do tifo, da difteria, da gripe, da peste bubônica, possivelmente da malária, provocaram no Novo Mundo o que Bobyns chamou de “um dos maiores cataclismos biológicos da humanidade”. Nem mesmo neste caso devemos minimizar a culpa dos colonizadores. Com efeito, o que possibilitou a alta taxa de mortandade indígena foram os aldeamentos superpopulosos construídos pelos portugueses através dos descimentos. Diversos autores assinalam que os índios morriam como insetos nestes aldeamentos, que os descimentos eram contínuos e foram praticados até o final do período colonial. Assim, os portugueses foram sem dúvida alguma responsáveis diretos pela hecatombe dos índios através da contagio por doenças para as quais eles não tinham defesas naturais.

Os ecos desta política ainda se fazem sentir nos dias de hoje. Assim como o processo de aculturação. Só que agora ele é uma conseqüência da exposição das comunidades indígenas à nossa cultura de massa. A dependência dos produtos industrializados se tornou a maior fonte de desagregação das tradições tribais. Foi o que ocorreu no caso dos Kaiapós.

Terence Turner relata que os Kaiapós abandonaram suas tradições tribais em razão do aumento dos conflitos intra e intergrupais motivados pela necessidade de objetos industrializados. Originalmente hostis, a partir de 1950 os contingentes Kaiapós foram sendo pacificados. Entretanto, antes mesmo da pacificação já haviam modificado sua forma de organização social para fazer face à nova realidade imposta pelos conflitos desencadeados para a obtenção de armas e outros utensílios. Como frisa “a pacificação” não marcou, portanto, o início da dependência político-econômica dos Kaiapós em relação aos brasileiros, mas uma modificação na forma política desta dependência.

Quanto à terras, as comunidades remanescentes continuam perdendo-as. A única diferença é que o processo de espoliação e a guerra de conquista territorial sofisticaram-se. A demarcação não ocorre ou ocorre com uma lentidão exemplar. Enquanto isto, as terras dos índios são sistematicamente ocupadas por madeireiros, fazendeiros e empresas de mineração. Sempre com a conivência das autoridades. As quais, diante do fato consumado, alegam que não podem fazer nada. O Ministério Público e o Poder Judiciário se calam... e os índios continuam perdendo uma batalha após a outra.

Nesta guerra suja, feita sob o estandarte da cristandade e com o auxílio militante da Igreja Católica, nem mesmo o número de vítimas indígenas é conhecido. Mas elas foram muitas. Provavelmente alguns milhões de índios tombaram nestes cinco séculos de conquista do território pelo europeu e seus descendentes. Manuela Carneiro Cunha estima a população indígena em 1.500 na casa dos milhões de habitantes e em 200 mil na atualidade. Sem dúvida alguma estamos diante de um dos maiores genocídios da história da humanidade.

Até mesmo a 8ª arte entrou na guerra contra os índios da América Latina. Há alguns anos foi lançado um filme tratando da vida de Fitzcarraldo. Nas telas do cinema ele apareceu como um louco que conseguiu a cooperação dos índios para transportar um barco de um rio para outro através da selva. Klaus Kinsky esteve soberbo no papel do herói... Herói? O Fitzcarraldo que perambulou pela Floresta Amazônica no final do século XIX foi um aventureiro violento e inescrupuloso. O texto de France-Marie Renard-Casevitz registra que Fitzcarraldo dava armas aos Cunibo que deviam pagar em escravos Kampa, depois armava os Kampa para que estes pagassem em escravos Cunibo (ou outros). Usando esta técnica, ele conseguiu uma verdadeira milícia armada e um contingente muito grande de escravos para tentar romper o istmo entre o Ucayali e o Madre de Diós transportando barcos através de trilhos de trem. Os relatos registram torturas, mutilação de mulheres que se recusavam à concubinagem e tinham as feridas cobertas de pimenta, seres humanos incendiados vivos para iluminar os banquetes campestres de Fitzcarraldo. Mas nada disso foi objeto de preocupação dos cineastas que realizaram o filme. Acabamos ficando com a imagem do herói louco, do visionário.

A partir do momento em que a sociedade envolvente se tornou esmagadoramente maior (200 milhões de brasileiros para 200 mil índios), já não há necessidade de tropas, descimentos ou missões. O simples contato se encarrega de fazer os índios progressivamente perderem sua identidade. Mas somos otimistas. Nos próximos 500 anos certamente o problema será resolvido. As demarcações não serão mais necessárias, porque não haverá mais aldeamentos indígenas, nem índios. Enfim a guerra do Brasil aos legítimos possuidores desta terra terá chegado ao fim e o país será finalmente pacificado. Só então talvez olharemos para trás e lamentaremos nossa própria barbárie.


Texto de Fábio de Oliveira Ribeiro

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