domingo, 23 de fevereiro de 2014

XERIMBABO – o melhor parente do homem

Uma índia guajá do Maranhão nua, dando de mamar a um filhote de porco selvagem enquanto segura seu próprio filho com o outro braço. Esta fotografia, de Pisco Del Gaiso, foi publicada na Folha de S. Paulo em 1992 e representa um dos ícones exóticos que os fotógrafos gostam de captar entre os índios. Cenas como essa devem ter sido vistas muitas vezes por missionários, colonizadores ou viajantes estupefatos. Para muitos, trata-se de uma visão muito próxima do animalesco, que lembra as mulheres de Tebas matando animais selvagens com as próprias mãos enquanto amamentam seus rebentos na tragédia “As Bacantes”, do grego Eurípides (484-406 a.C.). Mas outros acreditam que seja a prova do amor que os índios sentem pelo mundo natural.

A palavra “XERIMBABO” dá pistas desse afeto entre os nativos e os animais. O termo cherimbane – que significa “coisa muito querida” – foi recolhido pelo pastor e missionário francês Jean de Léry (1534-1611) durante as pesquisas que fez para o livro “Viagem à Terra do Brasil” (1578). Ele percebeu a expressão observando uma índia com um papagaio. Somente sob o comando de sua dona, a ave dançava, cantava, assobiava e imitava os gritos de guerra dos Tupinambá. Alguns de seus conterrâneos tentaram comprá-lo, mas não conseguiram fechar negócio porque a nativa só aceitava trocá-lo por “um canhão grande”. A história fez com que Léry estabelecesse um elo entre o apreço pelos chamados xerimbabos e os corvos que os antigos romanos mantinham em suas casas e que, ao morrer, eram velados tal qual um ente querido.

Como a maioria das palavras indígenas que acabaram se incorporando ao português brasileiro, xerimbabo vem do tupi. A palavra não é encontrada nas outras línguas nativas do Brasil, que são muitas e não têm sequer um termo equivalente. Com a incorporação da palavra xerimbabo, o português é uma das poucas línguas do mundo que contam com um nome específico para designar um animal de estimação.

Quando Léry fez esse estudo, os europeus dependiam muito mais do que agora de uma série de animais domesticados, basicamente os mesmos que exploramos até hoje. Eles eram os responsáveis por boa parte dos bens alimentícios, do vestuário, das matérias-primas e da força mecânica para a indústria e o transporte. Mas os bichos de estimação eram relativamente raros: só havia os cães pequenos das madames mais abastadas e os pássaros engaiolados. Com o começo das expedições a outros continentes, os muito ricos passaram a colecionar papagaios, macacos e até leões ou leopardos, que eram exibidos como curiosidades, frequentemente acorrentadas.

Nem mesmo os bichos mais prezados, como os cães de caça ou os cavalos que participavam de desfiles, se dissociavam dessas utilidades. Os animais domésticos eram essencialmente coisas, e estavam muito longe do status atual de membros do núcleo familiar de que milhões de cachorros, gatos e outros animais gozam. Mesmo assim, por morarem em casas ou apartamentos com todo o conforto, eles ainda são vistos como mais uma excentricidade da sociedade.

Nas aldeias indígenas do Brasil, essa convivência era levada a extremos. Isso era surpreendente para os portugueses, porque os índios não domesticavam os animais para o trabalho ou o consumo, ao contrário dos europeus. O general Couto de Magalhães (1837-1898), uma referência na política indigenista no Império, chegou a escrever sobre o tema no livro “O Selvagem” (1876): “Quem visita uma aldeia selvagem visita quase que um museu vivo de zoologia da região onde está a aldeia: araras, papagaios de todos os tamanhos e cores, macacos de diversas espécies, porcos, quatis, mutuns, veados, avestruzes e até sucurijus, jibóias e jacarés. (...) O cherimbabo do índio (o animal que ele cria) é quase uma pessoa de sua família”.

Além de cultor do indianismo romântico, o general Magalhães argumentava que não era por incapacidade que os índios não exploravam economicamente os animais domésticos. De fato, criar xerimbabos era uma prática muito diferente da domesticação de animais que era feita no Velho Mundo, mesmo quando se tratava de animais de estimação. Os índios não criam animais, e mesmo que alguns grupos se dediquem à pecuária nos dias de hoje, o trabalho de selecionar, cuidar, acasalar e pastorear algumas espécies não se estendeu ao mundo dos bichos de estimação. Os xerimbabos são, normalmente, filhotes encontrados na floresta ou crias cujos pais foram abatidos durante as caçadas.

Nem todas as espécies fazem jus a esse mesmo tratamento. Para se apoderar das aves psitacídeas – como papagaios, araras e baitacas –, os índios, intencionalmente, tiram os filhotes dos ninhos e os criam em casa. Além de entreter a aldeia, essas aves fornecem suas plumas para enfeites. Existe até mesmo uma arte singular, a chamada “tapiragem”, por meio da qual dietas especiais provocam uma alteração na cor das penas. Os cães não gozam de um tratamento privilegiado, embora os índios apreciem suas habilidades para a caça próprias de um predador, coisa que não se pode dispensar na floresta. Visitantes chegam a questionar o amor dos nativos pelos xerimbabos quando notam em que condições esses animais são mantidos numa aldeia. Cunhou-se até a expressão “cachorro de índio”, que define um ser famélico, vítima de todo tipo de pragas. Mas os cães não são de todo desprezados, embora continuem sendo animais recém-chegados do mundo dos brancos.

Entretanto, a presença de xerimbabos depende de circunstâncias muito mais fortuitas: pode-se dizer que o seu status na aldeia oscila entre o de um hóspede e o de um cativo. Isso porque as sociedades indígenas são, na sua essência, sociedades de caçadores. Mesmo quando a caça não rende o suficiente para alimentar a tribo, ela encerra em si uma simbologia e uma maneira peculiar de ver o mundo. Para o caçador, o animal não é uma coisa, e sim alguém dotado de inteligência, astúcia e noção do ambiente que o cerca. Por isso tem sido difícil fazer com que os grupos indígenas adquiram destreza no trato do gado: como fazê-los entender que é necessário supervisionar a alimentação e o acasalamento de animais adultos?

Com os filhotes de animais selvagens, a relação é bem diferente. Acostumados ao convívio humano, eles em geral circulam soltos pela casa e pela aldeia, podem ser objeto de grande afeição e até mesmo amamentados pelas mulheres da tribo. À medida que crescem, uma questão ambígua vem à tona. Vários estudos ressaltam a semelhança entre a situação do xerimbabo e a do cativo dos antigos Tupinambá – que, por sua vez, mantinham seus prisioneiros junto a si, às vezes durante longos períodos, antes de sacrificá-los e comê-los. A guerra e a caça são consideradas ações muito parecidas, e sabe-se que um dos objetivos da batalha tradicional era a captura de crianças e mulheres de outras tribos, que eram integradas ao grupo e educadas nos seus costumes.

Os xerimbabos podem, no máximo, tornar-se uma espécie de parentes obtidos por captura, como também podem acabar sendo vendidos – como acontecia com escravos – ou simplesmente abatidos e comidos. Anos atrás, em uma visita a uma aldeia Yawanawa no Acre, fiquei sabendo que uma anta jovem visitava frequentemente um dos casarios; vagava pela aldeia, especialmente atraída pelos pés de jambo, embora ficasse longos períodos sem ser avistada. Havia planos fatais para o paquiderme: como ele já estava grande, logo seria abatido e devorado. Por isso, os xerimbabos ocupam uma posição intermediária entre caça e gado, servindo eventualmente como uma espécie de reserva alimentar para alguns grupos, sobretudo quando são caçados com frequência.

A paixão das sociedades urbanas de hoje em dia por seus pets coincide com um momento em que descobrimos que os animais têm uma inteligência e uma sensibilidade não tão distantes das humanas. Eles não são, definitivamente, aqueles seres quase mecânicos, movidos apenas por instintos cegos, dos quais os humanos deviam apenas se servir. Por conta disso, as sociedades indígenas não colocam o homem no centro do universo. Eles sempre entenderam os animais como humanos de um outro tipo, com os quais podem ser mantidas relações tão complexas quanto as que mantemos com os nossos semelhantes.

Texto de Oscar Calavia Saez

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