domingo, 23 de fevereiro de 2014

BANDEIRANTES

Altivos, imponentes, longas botas, chapéu e armas vistosas. Esqueça a imagem típica dos bandeirantes difundida pelos livros didáticos. A realidade era bem outra: as tropas caminhavam descalças por extensos territórios, sujeitas a todo tipo de desconforto, à mercê dos ataques de índios e de animais, fustigadas pela fome.

Antes de virar herói – invenção da elite no início da República, para enaltecer a capacidade de liderança dos paulistas –, o bandeirante foi o protagonista de uma colonização árdua e violenta, que durante mais de dois séculos desenvolveu uma cultura própria, bem distante dos padrões europeus.

Desde o século XVI até as primeiras décadas do XVIII, expedições partiram em busca de metais preciosos e de índios para serem vendidos como escravos nas plantações que abasteciam a Colônia. Essas incursões ganharam o nome de “BANDEIRAS” – possivelmente por causa do costume tupiniquim de levantar uma bandeira em sinal de guerra.

O sucesso das empreitadas dependia do “cabo da tropa”, ou “capitão do arraial”, sertanista experiente que tinha poder absoluto sobre seus subordinados. O cabo reunia na tropa seus filhos (mesmo ainda adolescentes), parentes e agregados para auxiliá-lo no comando, fazendo das bandeiras um negócio eminentemente familiar.

O capelão era outra figura obrigatória, encarregado de dar assistência espiritual à tropa. Grupos maiores contavam também com o alferes-mor, responsável pela partilha dos índios capturados, e o escrivão. Mulheres índias ou mestiças (temericó) acompanhavam os bandeirantes pelo sertão na condição de escravas.

No entanto, a maioria dos integrantes eram escravos indígenas, geralmente guaranis ou carijós, que formavam tropas auxiliares encarregadas de combater e capturar índios no sertão. Vale dizer que, em meados do século XVII, 83% da população da vila de São Paulo era formada por índios. Os mamelucos, descendentes de pai branco e mãe índia, muitas vezes atuavam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” (tupi) e transitavam entre o mundo indígena e o português. Serviam também de “isca” para as capturas: vestidos com batinas pretas e cabelos cortados em tonsuras, passavam-se por jesuítas e assim escravizavam os índios sem maiores resistências.

Conhecimentos herdados pelos mamelucos eram cruciais para a sobrevivência no sertão: orientação e observação dos movimentos do Sol, dos astros e dos rastros, técnicas de caça e pesca, construção de embarcações e mareagem pelos rios, sistemas de comunicação por meio do fogo e da sinalização com gravetos, além da classificação da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos.

Os bandeirantes utilizavam vários tipos de armas: espadas, adagas, lanças, facas, terçados e alfanjes, além das de fogo (espingardas, bacamartes, mosquetes, arcabuzes, pistolas e escopetas). Na hora do combate, contudo, preferiam recorrer aos arcos e flechas indígenas, pois as armas de fogo geralmente enferrujavam e eram de difícil manejo no calor das batalhas. Para se defender das flechas inimigas, usavam gibão de couro de anta recheado de algodão.

Um meio eficiente de seduzir os índios era oferecer-lhes suprimentos como anzóis, contas, facas, espelhos, tesouras e aguardentes de cana. O escambo, prática tradicional das sociedades indígenas, foi empregado na primeira etapa das bandeiras com o intuito de transformar, por meio “amigável”, os nativos em escravos.

Já no final do século XVI, a crescente demanda de mão-de-obra das grandes fazendas agrícolas do planalto motiva expedições para sertões mais distantes. A primeira bandeira de grande porte saiu de São Paulo em 1628, sob o comando do famoso Antônio Raposo Tavares (1598-1658), com cerca de 900 paulistas e dois mil guerreiros tupis. Raposo se estabeleceu num arraial na entrada do território de Guairá, e dali comandou violentos ataques às aldeias e missões espanholas daquela região, e também em Tape (atual Rio Grande do Sul) e Itatim (atual Mato Grosso do Sul), nas proximidades da bacia do Rio da Prata. Conta o jesuíta Ruiz de Montoya que os paulistas destruíram onze missões com populações de três mil a cinco mil índios – o que resulta num total de 33 mil a 55 mil índios capturados. Para Luiz Felipe de Alencastro, na zona de Guairá e Tape as bandeiras capturaram aproximadamente 100 mil indígenas, em uma das “operações escravistas mais predatórias da história moderna”.

Em 1641, a Batalha no Rio Mbororé, afluente do Uruguai, marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros, com 350 bandeirantes e 600 índios tupis em 130 canoas, foi surpreendida e derrotada, numa batalha de seis dias, por 300 índios guaranis em 70 canoas, armados com arcabuzes e arcos da Missão de São Francisco Xavier (atual Argentina). Depois dessa derrota, os bandeirantes mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região Centro-Oeste.

Suas condições de vida eram precárias. Os mantimentos eram apenas cabaças de sal e pães de “farinha de guerra”, feitos de mandioca ou de milho. Completavam seu sustento por meio da caça e da pesca, e incorporavam ao cardápio alimentos improvisados: frutas silvestres, pinhão, raízes, tubérculos, palmitos, mel-de-pau, ovos de jabuti e os “paus de digestão”, ou seja, grelos de samambaia e suas variações. Outra fonte de alimento eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas e destruídas como prova da supremacia dos bandeirantes.

Apesar disso, a fome era quase sempre uma companheira de viagem. Da tropa do capitão Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, perdida numa grande chapada, morreram vítimas da fome mais de 40 pessoas. Luís Barbalho Bezerra, comandante da bandeira formada para combater os holandeses na Bahia, relatou em seu regresso que a fome foi tanta que os paulistas comeram os poucos cavalos que havia, além de couros, raízes de bananeiras e muitas imundícies. Depois de oito meses de cativeiro entre os índios paiaguás do Rio Paraguai, João Martins Claro, paulista, e Manuel Furtado, do Rio de Janeiro, fugiram nus, sem nada de ferro, e sobreviveram durante alguns meses do ano de 1731 comendo somente frutas, cocos, raízes e gafanhotos.

Aliás, o governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, impressionou-se com o rotineiro costume entre a gente paulista de comer “bichos imundos e coisas asquerosas”, como o içá torrado (formiga saúva fêmea). Também o bicho-de-taquara, apreciado pelos índios como um manjar, foi largamente consumido pela população colonial. Uns comparavam-no aos miolos de boi, outros, à manteiga fresca. Para matar a sede, apelava-se para as raízes vegetais, como a de umbuzeiro, mandacarus, cipós, taquaruçus e gravatás.

Animais selvagens e peçonhentos causavam sérios estragos nas tropas. Jararacas, cascavéis, corais e sucuris infundiam verdadeiro horror aos sertanistas. A onça pintada (jaguar) e a onça parda (suçuarana) atacavam viajantes inexperientes, que se descuidavam pelos caminhos do sertão. O maior martírio, entretanto, era resistir às investidas dos mosquitos, responsáveis por incontáveis noites de insônia. Bichos-de-pé, formigas e carrapatos infestavam o cotidiano dos bandeirantes. A rotina tornava-se ainda mais miserável pelo constante temor de um súbito ataque indígena. A ponto de os integrantes da bandeira do alferes José Peixoto da Silva Braga se virem obrigados a dormir em ilhas, enterrados na areia.

As bandeiras foram a principal atividade da economia de São Paulo até a década de 1690, quando foi descoberto o ouro na atual região de Minas Gerais. Usurparam os territórios indígenas, capturaram milhares de índios, arrasaram aldeias, destruíram etnias e favoreceram a difusão de epidemias. Muitos bandeirantes não voltaram ao planalto – como os primeiros povoadores de Minas Gerais, os que seguiram para o vale do São Francisco e os que foram combater os tapuias (índios não-tupis) e quilombolas no Nordeste.

Na história da São Paulo colonial, índios de várias etnias, na condição de escravos, contribuíram para a formação de uma sociedade baseada em saberes, técnicas e práticas nativas. A língua geral, por exemplo, foi falada pela maioria da população de São Paulo até 1759, quando acabou proibida pelas autoridades portuguesas. Mas a consolidação de uma elite paulista, enriquecida pela agricultura e pelo comércio a partir do século XVIII, marginalizou as populações indígenas e rompeu com os padrões culturais dos ameríndios. Nesse processo de conquista, os paulistas tornaram-se grandes proprietários de terras, e estas ficaram sujeitas, em definitivo, à soberania da Coroa portuguesa. A verdadeira história dos bandeirantes ia ficando para trás, assim como seu rastro de destruição.

Texto de Glória Kok

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