quinta-feira, 19 de setembro de 2013

SHENIPABU MIYUI... e a literatura indígena


A cultura indígena é parte integrante na formação do arcabouço cultural brasileiro; a despeito disso, porém, sua presença e sua inestimável contribuição no âmbito das artes não costumam ser devidamente apreciadas e, muitas, vezes, sequer percebidas. É nesse sentido que podemos afirmar que a riqueza cultural indígena precisa ser melhor compreendida a fim de que possa receber sua devida valorização. E isso vale inclusive para as manifestações de nossa literatura.

Com a proposta de pesquisa literária voltada para a produção indígena, esperamos contribuir para ampliar as perspectivas da literatura brasileira e para auxiliar a compreensão de um universo aparentemente tão distinto do nosso (uma vez que somos pautados pelo referencial ocidental europeu), mas que, no entanto, apresenta inegáveis e importantes pontos de intersecção conosco, inclusive no âmbito da produção literária. Trata-se de área com caráter inovador e carente de pesquisas acadêmicas, principalmente na Região Sudeste. O difícil acesso a um material pertinente e atualizado, a falta de eventos acadêmicos (simpósios, colóquios, congressos) que contemplem esse filão da literatura, a raridade de interlocutores, etc. compõem uma situação de descaso que justamente nos incentivou a refletir sobre essas questões.

Hoje, o próprio índio escreve sobre os índios (e também sobre os brancos) para que, principalmente, outros índios leiam. Podemos dizer que está em processo de configuração, no Brasil, uma literatura do índio para o índio. Atualmente, é a figura indígena que se apresenta como matriz criadora: o índio está se firmando enquanto sujeito de sua própria história. É seu olhar diante do mundo que se reflete naquilo que é contado e escrito. E, atualmente, a interferência do “branco” é cada vez menor e menos modificadora e até mesmo bem menos devastadora.

Toda essa área é muito ampla e merece novas perspectivas de estudos, sendo um horizonte que se abre diante das pesquisas acadêmicas. Conforme Almeida e Queiroz (2004, p. 195), “os escritores indígenas estão descobrindo o Brasil”. Cabe, então, a nós RE-descobrirmos os índios, os “autores da floresta”, sob um aspecto mais humano, mais democrático, mais literário.

Sendo assim, o presente trabalho tratará inicialmente do processo de configuração da literatura escrita de autoria indígena no Brasil, apresentando as principais características dessa literatura, bem como seus mais significativos representantes. Posteriormente, faremos uma reflexão acerca das narrativas indígenas de origem mítica – ou histórias de antigamente –, mostrando a importância dessas narrativas, que antes eram veiculadas apenas através da oralidade e hoje estão sendo escritas em forma de livros, possibilitando sua leitura como texto literário.

O conteúdo de nossa fala hoje não se apresenta como estudo concluído, com afirmações definitivas, mas antes como reflexões primeiras acerca de tema a ser desenvolvido aprofundadamente ao longo de nossa pesquisa de doutorado, que ainda se encontra em andamento.

O interesse pelo estudo das narrativas indígenas surgiu já durante a pesquisa de mestrado, resultando num trabalho de análise de contos populares de origem indígena, coletados por Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero e reunidos em Contos populares do Brasil (1883). Com os contos publicados por Romero, o universo da autoria indígena ao mesmo tempo se aproxima e se distancia de nós. A proximidade se dá pelo fato de Romero nos apresentar textos cuja origem está na cultura aborígine, refletindo, assim, aspectos de seus valores, costumes, visão de mundo. No entanto, as intervenções, adaptações, “correções” e adequações promovidas por Romero inevitavelmente anuviam ou mesmo apagam a autoria indígena primordial (operante durante a transmissão oral).

Atualmente, o séc. XXI delineia um novo cenário: de um lado, há ferramentas de análise mais sensíveis frente ao fator estético (em contraposição às perspectivas positivistas da época de Romero) e uma crescente conscientização e respeito pelas diferentes culturais, de outro, o progressivo surgimento de autores indígenas, que pavimentam a estrada entre culturas, línguas e criações estéticas. Sendo assim, na presente pesquisa, nossos estudos são voltados para narrativas não só de origem indígena, mas também de autoria indígena.

Temos nos dedicado a verificar como tem ocorrido o “fenômeno da escrita indígena” no Brasil e como essas produções escritas de autoria indígena têm se revestido de um caráter literário. Buscamos investigar como se iniciou o processo de escrita indígena, quais são as características dessa literatura e quais são seus principais representantes.

Em primeiro lugar, merecem destaque os direitos garantidos legalmente aos indígenas brasileiros essencialmente pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e pelo Plano Nacional da Educação, de 2001, que lhes asseguram um processo de ensino-aprendizagem diferenciado.

De acordo com Souza (2003), a constituição brasileira de 1988 reconheceu oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e garantiu o direito à educação bilíngüe. Como consequência disso, a partir da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país. Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, iniciaram sua atuação no cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez necessário. Além de aprenderem ou aprimorarem o domínio da língua portuguesa escrita, muitas tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem.

No Brasil, existem cerca de 2.765 escolas indígenas diferenciadas e cerca de 246 mil discentes índios matriculados – 22 mil alunos na educação infantil; 175 mil no ensino fundamental; 27 mil no ensino médio; 21 mil na Educação para Jovens e Adultos (EJA); um mil na educação profissional e 9 mil no ensino superior –, segundo informações do Censo Escolar 2010. Temos também, em nosso país, cerca de 12 mil professores indígenas, dos quais 2 mil são graduados e 3 mil estão em formação. São esses professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos, fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade para o âmbito da escrita. Eles têm construído, a partir de suas práticas de trabalho, a literatura das suas comunidades: são os chamados “livros da floresta”, segundo a Profª Drª Maria Inês de Almeida, docente da UFMG, cujos estudos se voltam para a produção literária escrita de autoria indígena no Brasil, estudos esses fundamentais para o desenvolvimento de nossa pesquisa.

Naturalmente, vale ressaltar que, ao escreverem suas narrativas, os indígenas deixam de lado toda a complexidade do processo performativo de narrar oralmente, mas outras características da oralidade, como a repetição, a condensação dos enredos, as expressões que marcam o início e fim das histórias, a informalidade e coloquialidade da linguagem ainda são preservadas.

Antes, toda contribuição cultural indígena era coletada, selecionada, modificada e registrada pelos brancos; certamente, essa intermediação fazia com que muito da originalidade das narrativas fosse perdida. A figura do índio era vista apenas como personagem das histórias dos brancos ou os brancos se posicionavam como “donos”/ autores das histórias dos índios. O que tem acontecido nas últimas décadas é que os próprios indígenas têm assumido a voz narrativa, tornando-se sujeitos, autores/ criadores de seu legado cultural escrito que, por sua vez, é a expressão de seu legado mítico.

As produções indígenas são escritas tanto em suas línguas de origem quanto em língua portuguesa. Há livros que utilizam apenas a língua indígena; outros, apenas o português; outros ainda que apresentam as narrativas na língua indígena e traduzidas para o português, e, por fim, aqueles que apresentam duas versões (e não traduções) das histórias, uma na língua indígena e outra em língua portuguesa, como é o caso da obra que compõe o corpus de nossa pesquisa. O que podemos verificar nesse processo é que a língua do branco, utilizada anteriormente como instrumento de dominação e manipulação de saberes, passa agora para o domínio escrito do índio. O que antes era uma “arma” contra passa agora a ser uma “arma” favorável ao indígena, uma ferramenta que possibilita sua expressão imaginativa, comunicativa e também um instrumento político para a divulgação e valorização de sua cultura, seus costumes e seus direitos.

A pesquisa centrada na literatura escrita de autoria indígena em certa medida ainda é “terreno virgem”, o que se deve ao fato de essa literatura ainda ser vista basicamente como matéria de estudos antropológicos, mas não de estudos literários. A nossa proposta de análise considera a matéria estética desses textos – universo composto de expressão de idéias, de criatividade verbal e elaboração da composição narrativa.

Os indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, geralmente de autoria individual, que tratam de fatos e acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de territórios. Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e mítica, geralmente de autoria coletiva, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo informações de Souza (s.d., on-line).

Na produção de obras indígenas de autoria individual, destacam-se os escritores: Daniel Munduruku, Álvaro Tukano, Graça Graúna, Ailton Krenak, Eliane Potiguara,Cássio Potiguara, Olívio Jekupé, Yagrarê Yamã, Darlene Taukane, Naine Terena, Edson Brito (kayapó), dentre muitos outros. Na produção de obras de autoria coletiva, podemos citar os povos: guarani, maxakali, yanomami, kiriri, desana-ware, satare-mawe, kaxinawá.

As comunidades indígenas consideram a escrita de seus mitos muito importante (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 233). Tem acontecido, em várias aldeias brasileiras, uma interação diferenciada entre os mais velhos (considerados mais sábios) e os mais novos, que são os verdadeiros protagonistas desse novo processo educacional e literário. Os mais velhos se dispõem a narrar aos coletores as histórias “verdadeiras” de seus povos, as histórias de um tempo antigo, remoto, de um tempo em que a escrita não existia para dizer que havia histórias falsas. Os coletores, por sua vez, respeitam todo o contexto cultural no qual as narrativas estão inseridas e escrevem/registram aquilo que ouvem. Configura-se um processo bem complexo de fixação das expressões literárias orais para uma expressão literária escrita, que será editada, publicada e utilizada na formação escolar das crianças da aldeia ou então que será destinada também ao público leitor branco, mesmo que seja em menor escala.

A forma mais simples, e talvez a mais clara, de definir o mito é como a representação concreta da concepção do mundo de comunidades humanas. Dessa forma, a tradição mítica de cada povo constitui um esforço no sentido da representação de si próprio, do que é, do que faz, de como vive, e do estabelecimento de toda uma moral, um ritual, uma mentalidade, baseando-se nessa mitologia. A função social do mito, porém, não exclui a sua função poética ou recreativa (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 233).

Podemos perceber que, ao escreverem e publicarem seus mitos, os índios concretizam o universo de sua cultura, seus costumes, suas crenças. O que acontece nos dias de hoje não é um simples processo editorial e literário, mas sim o assumir, por parte dos índios, um novo posicionamento na História e na literatura, um posicionamento mais ativo, coletivo e até mesmo político. Através da escrita de seus mitos, os índios colocam-se como os verdadeiros autores de sua História, segundo Almeida e Queiroz (2004).

Podemos dizer que a literatura indígena vinha passando por um processo de folclorização, com o intuito de ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas, por exemplo, trazia as entidades míticas desespiritualizadas. Apenas a escrita desses mitos, que possibilita que eles sejam lidos como literatura, reespiritualiza as entidades míticas, na medida em que recompõe graficamente suas formas rituais (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 205).

É nessa linha que se dá a publicação de Shenipabu Miyui, que constitui o corpus de minha pesquisa. Uma obra de autoria coletiva dos índios Kaxinawá, composta por 12 narrativas de origem mítica e organizada pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá.
Shenipabu Miyui, ou História dos Antigos, é o resultado de uma pioneira pesquisa realizada durante seis anos por um grupo de professores Kaxinawá sobre parte da história oral do seu povo autodenominado Huni Kui, ou “Gente Verdadeira”. Foi primeiramente gravado por esses jovens pesquisadores junto aos velhos, mestres da tradição, em Terras indígenas do Brasil e Peru. E depois foi transcrito e escrito por eles em língua Kaxinawá, Hãtxa Kui, ou “língua verdadeira”, uma das nove línguas da família lingüística Pano existentes no Acre, e em português (KAXINAWÁ, 2008, p. 9).

Os kaxinawá compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios. Destes, 1500 estão distribuídos por nove aldeias no Alto Rio Purus e seu afluente, o Rio Curanja, no Peru. Outros 3500 vivem em onze territórios indígenas localizados no Brasil, ao longo do Rio Purus e de afluentes do Rio Juruá.

O povo indígena Kaxinawá entrou em contato com o “homem branco” no final do século passado, quando foram incorporados como mão-de-obra dos seringais. Tentando compreender as relações econômicas com os patrões, os índios seringueiros passaram a se interessar pela escrita (alfabética e numérica), já que, até então, constituíam uma sociedade de tradição predominantemente oral. A dominação do sistema escrito dos brancos serviu para que a cooperativa dos trabalhadores indígenas tentasse garantir a legitimidade dos seus direitos.

Em 1983 foi criada a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/ AC), uma das primeiras organizações não-governamentais de apoio à questão indígena no país. Essa organização foi responsável pelo início do programa de formação de professores indígenas na região. Através do projeto “Uma Experiência de Autoria” com o I Curso de Formação de Monitores e Agentes de Saúde Indígenas, teve início o primeiro processo de formação profissional de jovens indígenas no Acre, não só com o povo Kaxinawá, mas também com os outros grupos Pano.
Deste trabalho educacional com a formação de professores indígenas resultou o livro Shenipabu Miyui, além de muitos outros, escritos pelos professores indígenas Kaxinawá sozinhos, ou com outros professores de outras etnias do Estado, para seu uso e difusão em suas escolas e em outras escolas brasileiras (KAXINAWÁ, 2008, p. 15).

Para a elaboração do livro Shenipabu Miyui, um dos professores dos primeiros anos do projeto de formação profissional viajou para as aldeias Kaxinawá peruanas, coletando as narrativas dos antigos e gravando-as em fitas K-7. Ao voltar para o Brasil, apresentou o material coletado aos outros professores Kaxinawá do projeto. A partir daí, todo o grupo passou a trabalhar em conjunto na confecção do livro, coordenados pelo professor Joaquim Mana. Uma segunda parte do processo consistiu em coletar mais versões das narrativas, agora dos mestres antigos das aldeias brasileiras.

Várias versões foram ouvidas e foi necessário realizar comparações, análises, escolhas até chegarem ao grupo de doze narrativas de antigamente, que compõem a obra.

Inicialmente, os Kaxinawá optaram por publicar o livro apenas com as versões das histórias escritas na língua indígena Hãtxa Kui, sem colocá-lo em contato com a língua portuguesa. Entretanto, após várias discussões, compreenderam que deveriam dar a oportunidade a outros leitores, de outras etnias, de conhecerem as histórias Kaxinawá. Assim, iniciou-se mais um processo, o de coletar entre os mestres da tradição, que dominassem a língua dos brancos, versões das narrativas selecionadas para o livro, mas agora em português. Portanto, Shenipabu Miyui é uma obra bilíngüe, porém não se trata de traduções dos mitos Kaxinawá, mas sim de versões em língua portuguesa. São apenas as versões em português que formam o corpus de trabalho de nossa pesquisa.

A primeira edição do livro, em 1995, aconteceu por meio do projeto da CPI/AC, com o apoio financeiro da Unicef e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas do Ministério de Educação e Desportos. A tiragem foi de 3000 exemplares, visando à difusão principalmente entre os próprios Kaxinawá. Diz Joaquim Mana:
Só agora nos últimos anos é que estamos com os direitos de ter uma comunicação através da escrita na nossa língua própria. Sendo um processo novo para os índios e para os assessores, encontramos várias interrogações no ar. Como se fôssemos andorinhas voando para pegar as moscas de sua alimentação numa tarde de temporal de chuva. Mas o túnel do futuro mostra que somos capazes de realizar os sonhos que sempre tivemos como povos diferentes, valorizados dentro de nós mesmos e espiritualmente (KAXINAWÁ, 2008, p. 5).

Em 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou a segunda edição do livro e incluiu a obra na lista de leituras exigidas para o Vestibular 2001 da instituição. Acreditamos que medidas como essa são extremamente significativas, pois representam um estímulo para a valorização da cultura indígena – que integra o leque cultural brasileiro – e para o enriquecimento da literatura brasileira contemporânea.

Em Shenipabu Miyui, os kaxinawá escrevem seus mitos, apresentando-os como narrativas que explicam o mundo, os seres, os valores, integrando o real/cotidiano com o suprareal, mágico, fabuloso, divino. Há, nos textos, a representação da visão integradora de mundo dos índios kaxinawá, que amplia a realidade, apresentando, por exemplo, personagens de caráter híbrido, ou seja, a linha que separa homem e natureza é muito tênue e as metamorfoses são constantes, sendo corrente a transformação de um ser em outro. Esse hibridismo que se manifesta sob forma das características físicas dos seres vivos e inanimados também se reflete em suas peculiaridades interiores, éticas e morais. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado e os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente, de acordo com Souza (s.d., on-line).

Por fim, outra característica importante da escrita indígena é seu grande apelo visual. Praticamente todas as histórias são ilustradas com desenhos feitos pelos próprios índios, estabelecendo um significativo diálogo entre os textos verbais e não-verbais, processo denominado por Souza (s.d., on-line) de narrativas multimodais. As produções narrativas escritas dos Kaxinawá são freqüentemente acompanhadas de dois tipos de desenhos: kenê e dami. Os desenhos kenê compõem um conjunto altamente codificado de traçados geométricos; são desenhos geralmente em preto e branco que podem aparecer sozinhos (em um dos cantos ou no final da página na qual está escrita uma narrativa) ou junto com os desenhos dami. Os traços kenê possuem um significado mítico, pois representam metonimicamente a pele da anaconda-Yube, uma figura central da mitologia Kaxinawá, responsável por trazer a cultura, a sabedoria e o conhecimento a esse povo. A reprodução das formas geométricas que cobrem pele do anfíbio tem caráter mimético, acompanhando o desenho que integra o tecido “vivo”. Souza (s.d., on-line) diz também que esses grafismos kenê seriam usados como marcadores de veracidade, funcionando assim como fatores de legitimação das histórias contadas pelos Kaxinawá.

Já os desenhos dami, são desenhos figurativos, coloridos ou não, que acompanham as histórias, sugerindo uma cena narrativa. Eles podem representar animais, objetos, seres humanos ou sobrenaturais e não há, nesse tipo de desenho, preocupação com perspectiva ou com a reprodução fiel (imitativa), pois misturam, em um mesmo plano, personagens e espaços de naturezas diferentes. Em Shenipabu Miyui, esses textos não-verbais dialogam com os textos verbais e intensificam a representação da visão integradora de mundo indígena.

Diz Almeida sobre as narrativas Kaxinawá:
As doze histórias de Shenipabu Miyui formam, portanto, um conjunto, um livro, em cujo interior as narrativas ilustradas com desenhos mantêm um padrão narrativo, um nível coerente de legibilidade, uma sistemática textual, própria da organização livresca. Os temas são variados, os desenhos são figurações da variedade de situações e personagens, mas o fato de serem elaboradas e organizadas em conjunto, com a intenção de configurarem um livro, coloca-as definitivamente no âmbito da cultura letrada, na perspectiva do mundo editorial contemporâneo. Mesmo que o dado fundamental desta literatura seja sua inserção na tradição oral kaxinawá, a sua presença em livro desloca-a para o campo da história da literatura brasileira, mesmo porque seus textos tiveram seu momento de criação em língua portuguesa. O bilingüismo explícito dos autores kaxinawá, por estar escrito nas páginas do livro, garante o começo da história da literatura kaxinawá, ainda que esta se insira na brasileira (ALMEIDA, 1999, p.137).

A riqueza literária e pedagógica das narrativas indígenas escritas é imensa e merece um novo olhar acadêmico. Na contemporaneidade, a literatura escrita indígena alia-se à tradição oral para expressar toda a riqueza estética e milenar contida no legado mítico de cada comunidade. Termino citando novamente a professora Maria Inês de Almeida que diz que:
Contar o mito é batalhar pela sobrevivência do próprio povo. Superior à História, o sentido do mito existe na utilização repetitiva por grupos sociais que fundam sua unidade através de ritos que reencenam, de maneira intangível, o acontecimento da origem (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 251).
Escrevendo seus mitos, os índios assumem justamente sua dimensão estética, entendida como vontade de fazer obra de arte (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004, p. 254).

Texto de Érika Bergamasco Guessei

O início do livro e as três primeiras narrativas estão disponíveis no site:
http://pt.scribd.com/doc/36166735/Shenipabu-Miyui-Historia-dos-antigos-Incompleto

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