sábado, 7 de setembro de 2013

A CORDILHEIRA E A FLORESTA

Enquanto os incas desfrutavam de uma sociedade numerosa, complexa e sofisticada, os povos da Amazônia eram simples, esparsos e com conhecimentos rudimentares. Esta é a ideia reproduzida pela maioria dos livros de História, quando se trata do período pré-colombiano na América do Sul. Felizmente, esta visão dicotômica está hoje ultrapassada e a divisão radical entre Andes e Amazônia, como se fossem duas áreas culturais separadas e incomunicáveis, nunca existiu.

O intercâmbio cultural entre os povos andinos e amazônicos vinha de milênios de convivência. Habitando áreas geográficas próximas, compartilhavam costumes, línguas, canções, histórias e sabedorias. A floresta tropical comportava um número expressivo de habitantes e a dinâmica social dos grupos lá estabelecidos era bem mais complexa do que se pensava. O Império Inca, por sua vez, precisou ter uma postura flexível e diplomática para tentar conquistar os povos indígenas que viviam na Amazônia ocidental.

Extensas e antigas redes de comércio de longa distância ligavam Andes e Amazônia, permitindo um fluxo constante de produtos procedentes das duas áreas. Enquanto penas, algodão, tecidos e plantas subiam a cordilheira, metais (machados de cobre) e tecidos de lã desciam para a floresta. A iconografia do templo andino Chavín de Huantar (1.000 a.C., 250 quilômetros ao norte de Lima) é repleta de ícones da floresta. Restos de madeira chonta (Palmae), típica da Amazônia, foram encontrados em plataformas cerimoniais incas localizadas no topo de nevados andinos (c. 1.400 d.C.).

O “Manuscrito de Huarochirí” reforça ainda mais a intensidade dessas conexões. Produzido em c. 1608 por um autor indígena anônimo (provavelmente por vários autores nativos), é o único texto andino escrito totalmente em quéchua. A análise comparativa deste manuscrito com mitos de origem do povo amuesha da Amazônia sugere que eventos importantes dessa cultura aconteceram (pelo menos mitologicamente) em território andino. As narrativas amueshas remetem a lugares sagrados localizados nas atuais cidades peruanas de Tarma e La Oroya, a leste de Lima. Tanto o “Manuscrito de Huarochirí” como as mitologias amuesha falam de deslocamentos de povos que estavam na área andina, mas foram forçados a migrar para os vales tropicais da Alta Amazônia devido à chegada de um poder centralizador: os incas.

Esses exemplos sugerem que, durante o período pré-incaico, os povos andinos e amazônicos mantiveram um grau intenso de influência mútua, que ultrapassava a esfera puramente comercial. Com a chegada dos incas ao mundo andino, a situação se modificou. Ao se estabelecerem em Cuzco, por volta do século XIII, os incas dominaram algumas poucas regiões. Com o passar do tempo, novas alianças foram feitas, novos territórios foram adquiridos e o Império Inca iniciou um longo processo de expansão, que gerou transformações significativas no mundo andino e, consequentemente, na interação entre Andes e Amazônia.

Para obterem acesso a centenas de produtos da floresta essenciais à manutenção e à expansão de seu império, os incas tentaram impor o sistema redistributivo junto às etnias estabelecidas próximas à cordilheira andina. Esse sistema era um dos alicerces econômicos do Tahuantinsuyu (como os incas nomeavam seu império, na língua quéchua) e operava através de trabalhos periódicos, majoritariamente em construções civis e na agricultura. Os incas chegavam a remover populações inteiras de seus locais de origem e as enviavam para trabalhar em locais distantes com outras etnias, tendo o quéchua como língua franca. Além de produtivo economicamente, esse sistema de deslocamentos populacionais provou ser eficiente como estratégia para evitar insurreições de etnias locais descontentes com ele.

Os incas conseguiram implementar o sistema redistributivo praticamente em toda a área andina, porém tiveram pouco sucesso junto aos povos amazônicos. Em sua grande maioria, eles resistiram à submissão e conseguiram frear a expansão do império. Para os povos amuesha, ashaninka e machiguenga, os incas eram vistos como um poder tirânico, supercentralizado e baseado na exploração econômica de seus vassalos. Após inúmeras expedições infrutíferas, foram os incas que tiveram que se adaptar a formas alternativas de interação com os indígenas amazônicos, baseadas em sua maioriana reciprocidade, na troca de mercadorias e no uso compartilhado de recursos naturais.

A complementaridade ecológica era uma forma de exploração de recursos naturais pré-inca. Consistia no desenvolvimento agrícola de nichos ecológicos diferentes, o que permitia acesso a uma grande variedade de produtos. Era comum que comunidades étnicas de regiões distantes compartilhassem os mesmos nichos ecológicos. Esse sistema foi incorporado pelo Tahuantinsuyu para tirar proveito da enorme diversidade natural da região. Há evidências, por exemplo, de que os incas faziam uso de plantações de coca localizadas em território arawak, enquanto grupos arawaks tinham acesso a minas de prata que estavam sob controle inca. Por isso, pode-se dizer que os grupos étnicos da Amazônia ocidental faziam parte do Império Inca, porém apenas marginalmente – e, em sua maioria, de acordo com as regras estabelecidas por eles, e não pelos incas.

Além disso, não eram apenas os incas que organizavam expedições em direção à floresta. Existem relatos de expedições de índios chiriguanos (guarani) procedentes do Paraguai e Bolívia que, a partir do século XV, buscaram penetrar a parte sudeste do Tahuantinsuyu. Uma rede de fortalezas incaicas na atual Bolívia e próximas a territórios ocupados pelos chiriguanos indica seu empenho em criar mecanismos de defesa contra ataques procedentes das terras baixas.

Apesar dos conflitos e das diferenças entre as sociedades inca e amazônicas, elas conseguiram estabelecer intercâmbios cujos graus e formas variavam de acordo com uma constante dinâmica de tentativas de expansão e resistência de ambos os lados. Entretanto, essa relação sofreria uma reviravolta com a chegada de um novo elemento ao mundo andino: os espanhóis, que alcançaram o Peru em 1532. A partir de então, a Amazônia ocidental sofreria um processo de marginalização em relação à história indígena do continente sul-americano. Frequentemente, os espanhóis preenchiam as páginas de suas crônicas com palavras que retratavam os índios da Amazônia como selvagens, antropófagos, bárbaros e nus, que não conheciam a civilização e cuja cultura era inferior à dos incas. Apesar de haver cronistas dissonantes em relação a essa visão generalizadora, a grande maioria das crônicas espanholas projeta uma imagem da Amazônia como território selvagem e bárbaro. Foi em grande parte através do olhar europeu que se criou uma divisão artificial entre povos cujas trajetórias sempre convergiram.

Quando os espanhóis desembarcaram no Peru, o Tahuantinsuyu passava por sérios conflitos internos devido à recente morte do imperador Huayna Capac e à consequente disputa do trono por seus dois filhos, Huáscar e Atahualpa. O mundo andino tornou-se vulnerável politicamente, facilitando a invasão espanhola e o desmantelamento, pelo menos parcial, de várias instituições incaicas. Entre elas, as redes de interação dos Andes com a Amazônia. Com o assassinato de Inca Atahualpa pelos espanhóis e o estabelecimento do sistema colonial, os indígenas da Amazônia passaram a ser ainda mais estigmatizados, vítimas de estereótipos e do etnocentrismo europeu. Felizmente, graças à história e a estudos multidisciplinares,essa visão – que persistiu por séculos – é hoje insustentável.

Texto de Cristiana Bertazoni

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