terça-feira, 10 de setembro de 2013

A "CIVILIZAÇÃO" DOS ÍNDIOS



O Tratado de Limites de Madri, em 1750, desencadeou uma série de ações do governo luso em relação a seu Reino. Até o Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, sucederam-se fatos importantes que transformaram as feições de uma parcela do Reino português: o território do Brasil. Como se sabe, esses limites cronológicos compreenderam o reinado de D. José I e a ação de seu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, o discutidíssimo Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal. Este procurou desenvolver um programa de reorganização econômica, social, administrativa, judicial e, sobretudo, política de Portugal e suas conquistas. Foi Pombal quem estendeu essas ações para fixar as fronteiras brasileiras e manter a unidade do Vice-Reino.

Assim, pode-se citar, entre muitas outras ações, o levantamento cartográfico e formação de comissões de limites, criação do Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, organização de capitanias subalternas ao Grão-Pará e Maranhão, sediando o governo em Belém, criação da Capitania de São José do Rio Negro (Amazonas) com resgate de índios, incorporação, por sequestro ou compra, de outras capitanias, criação da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, criação da Companhia de Pesca da Baleia, abertura de caminhos para o comércio, expulsão dos jesuítas, recriação da Aula de Engenharia do Pará, mudança da capital para o Rio de Janeiro com a elevação do Brasil a Vice-Reino, recenseamentos, visando o conhecimento real de habitantes e quantidade de homens válidos ao Serviço Real, criação de comarcas e ouvidorias, bem como de tropas regulares, auxiliares de milícia e reestruturação das ordenanças com a extinção da Companhia de Privilegiados da Nobreza, construção de fortalezas, melhoria de técnica agrícola - como uso de estrume e arado -, importação de negros para a região Norte e proibição de sua saída. Para solidificar tudo isso criou vilas e povoações.

Uma Carta, de 26 de janeiro de 1765, contendo as Instruções do então Conde de Oeiras, dirigida ao Vice-Rei de Estado do Brasil, Conde da Cunha, esclarecia uma das finalidades da política urbanizadora lusa. Por ela, a criação de vilas nas fazendas jesuíticas e aldeias dos índios, quanto em outros lugares que fossem tidos como próprios para essas fundações, a liberdade dos índios e o desenvolvimento do comércio entre eles, seria o melhor meio de resistir aos jesuítas cuja maior força e riqueza, na América, tinha sido o domínio completo da civilização dos mesmos índios. Por isso, D. José I ordenava que se estabelecessem “povoações civis” de índios livres. Instalados em núcleos urbanos, os índios deixariam de se mostrar como inimigos dos portugueses e dos espanhóis e não “assaltariam” os caminhos, as cidades, vilas e aldeias das duas nações. Na realidade os portugueses estavam perdendo território para os espanhóis, em especial nas regiões que, até a sua expulsão, estavam sob o domínio dos jesuítas.

Ao libertar os índios - Leis de 6 e 7 de junho de 1755 e Alvará de 8 de maio de 1758 -, a Metrópole ordenou a elevação de antigas aldeias e fazendas, as maiores a vilas e as menores a aldeias, lugares ou povoações, entregando sua administração aos índios com o intuito de, na prática, civilizá-los, educá-los, obrigá-los a falar a língua portuguesa. A intenção era fixa-los e integrá-los na sociedade dos brancos num núcleo urbano, para povoa-lo e, com isso, defender o território. Visava-se fortificar a Monarquia, libertando os índios. Essa liberdade, no entanto, baseava-se nas teorias de Jean-Jacques Rousseau, sobre a origem e fundamento da desigualdade entre os homens, de acordo com a dissertação apresentada por ele na Academia de Dijon, em 1755.

A liberdade dos índios, portanto, ainda era fictícia, pois eles estavam sujeitos ao Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão, estabelecido em 1758 (DIRETÓRIO, 1984, p. 85-126), que aplicava, entre os nativos, a prática corrente em alguns lugares da Europa, e de Portugal, estabelecida pelas Ordenações, pela qual os filhos órfãos de pais mecânicos, ou pais vivos dementes, deviam se dedicar aos ofícios mecânicos ou trabalhar a soldada. “O mesmo parece justo que se observe com os filhos de índios ainda que tenham pays vivos, porque por dementes e pródigos se reputam governados por Directores como seus tutores”.

Através desse documento foi dada a Lei de liberdade de comércio e de bens individuais aos índios, prometendo vantagens e prêmios para os brancos que casassem com índias. Foi proibido chamar a seus filhos de caboclos, além de igualá-los em tudo, teoricamente, aos outros vassalos brancos. Até que os indígenas fossem capazes de se inserir na sociedade civilizada, deviam ter um Diretor, em cada aldeia ou povoação, eleito na comunidade, com funções mais de orientação e instrução do que de administração. Bondade e brandura foram insistentemente recomendadas no trato com os índios.

O principal interesse se centrou nas regiões Norte e Sul, onde a questão de limites era mais frágil. Para o Norte foi mandado, como Ministro Plenipotenciário, para execução do tratado de demarcação de limites, iniciada a partir de 1754, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão de Pombal que, desde logo, começou a informar a Metrópole sobre os pormenores da verdadeira situação em que se encontrava a região duzentos e cinqüenta anos depois do descobrimento do Brasil.

Com a implantação desse projeto, na realidade, a Metrópole seguia as sugestões de Mendonça Furtado que mostrara, através de cartas desde 1752, vontade de realizá-lo. Uma resposta do Conde de Oeiras a seu irmão, em carta de 14 de março de 1755, dizia que Sua Majestade resolvera “reduzir as Aldeyas, e Fazendas a Villas, e Povoações Civis” e tomara “a mesma Rezolução a Respeito da liberdade dos Índios na conformidade de certa Doutrina de Solorzano”, permanecendo ainda, “em segredo esse negócio” até que próprio Mendonça Furtado se recolhesse ao Pará depois da viagem pela região amazônica.

Para cada uma das regiões do Brasil foram enviadas instruções para a criação das vilas e reorganização da administração, bem como homens de pulso forte para garantir o projeto, quer para o cargo de Governador e Capitão General, como o Morgado de Mateus em São Paulo, quanto para Ouvidores, Juizes de Fora, etc. Essas instruções, a depender da região, repetia alguns capítulos do Diretório do Grão-Pará e Maranhão e, em outras, tinham determinações específicas a serem observadas. Dentre essas instruções é interessante destacar a documentação relativa à capitania de Pernambuco, pois contêm, em anexo, uma Cartilha, que se transcreve mais adiante. Em todas as instruções havia a recomendação quanto à obrigatoriedade do uso da língua portuguesa nos novos núcleos.

Essas instruções, de 1759, rezavam no item:

(fl. 3v) “Sempre foi maxima inalteravel entre as Nasçoens, que conquistarão novos dominios introduzir logo nos povos novamente Conquistados o seu proprio Idioma por ser indisputavel hum dos meyos mais efficazes para os apartar das rusticas barbaridades de seus antigos costumes, e ter mostrado a experiencia, que ao mesmo passo, que se introduz nelle o uso da lingoa do Principe, que os domina, selhes radica tambem o afecto, veneração, e obediencia; observando pois todas as Nasçoens polidas do orbe este prudente, e solido systema, nesta conquista sepracticou tanto pelo contrario, que só cuidarão os primeyros conquistadores de estabelecer nella o uso da lingoa a que chamão geral, invenção verdadeiramente diabólica para que privados os Indios de todos os meyos, que os podião civilizar, permanecesem na rustica, e barbara sugeição em que até agora seconservão”.

No item 7:
“Para desterrar este perniciozo abuzo, serâ hum dos principaes cuidados dos Directores estabelecer nas suas respectivas v[il]as ou lugares uso da lingoa portugueza, não consentindo de modo algum, que os meninos, e meninaz, que pertencerem as (fl. 4) escollas, e todos aquelles indios, que forem capazes de instrucção nesta materia, uzem da lingoa propria das suas Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da portugueza na forma que S. Mag[estad]e tem recommendado em repetidas ordens, que até agora se não observarão com total ruyna espiritual e temporal do Estado”.

No item 8:
“E como esta determinação hê a baze fundamental, haverâ em todas as villas, ou lugares duas escolas publicas, huá para rapazes, e outra para raparigas, nas quaes se insignarâ a douctrina christaá, ler, escrever, e contar na forma que sepratica em todas as das Naçoens civilizadas ensignandosse nas raparigas, alem da doutrina cristaã, a ler, escrever, fiar, fazer renda, costuras, e todos os mais menisterios proprios daquelle sexo”.

No item 9:
“Para subsistencia das sobreditas escollas haverâ hum mestre, e huã mestra, que devem ser pessoas dotadas de bons costumes prudencia, (fl. 4v) e capacidade, de sorte, que possão desempenhar as obrigaçoens dos seus empregos, as quaes se destinarâ o emolumento de meyo tustão por mês de cada descipulo, e meyo alqueire de farinha por anno na occazião da colheyta, pago pelos pays dos mesmos indios, ou pelas pessoas em cujo poder viverem concorrendo cada hum com a porção, que lhecompetir em dinheyro, ou effeitos, o que prezentemente se regula em attenção a grande mizeria e pobreza a que seachão reduzidos: no cazo porem de não haver nas villas, ou lugares pessoa alguá que possa ser mestra de meninas poderão estas ate a idade de nove annos ser instruidas na dos meninos, na qual se lhes ensignarâ o que a estes deyxo referido para que juntamente com as infaliveis verdades da nossa sagrada religião adquirirão com mayor felicidade o uso da lingoa portugueza”.

No item 12:
(fl. 6) “A classe dos mesmos abuzos não sepode duvidar, que pertença tambem o inalteravel costume, que sepracticava em todas as aldeas de não haver hum Só indio, que tivesse apelido, e de uzarem quaze todos de diferentes nomes dos que se lhespuzerão no baptismo, destinguindosse entre sy pelo de feras com que se denominão com escandalo geral no desprezo com que abração estes, e deixão aquelles de que verdadeyramente devem usar, e como de os terem, e conservarem sem apelido, sesegue haverem nas povoações muitas pessoas do mesmo nome sem qualidade que os destinga, de que se oregina confuzão, e falta de conhecimento necessario ao uso das gentes; terão grande cuidado os directorez de os fazer tractar debaixo dos que receberão no baptismo, dandolhes os apelidos pertencentes as familias portuguezas por ser moralmente certo, que todos os de (que) uzão os brancos, e mais pessoas que se achão civilizadas os procurão por meyos licitos, e virtuozos, para viverem e se tratarem a sua imitação”.

Outras instruções recomendavam, ainda, que todos os nomes das vilas criadas fossem de origem portuguesa.

Anexo a essas instruções encontra-se o modelo do (fl. 44) ‘Termo, que fazem os Directores para Satisfazerem as obrigaçoenz, que se lheencarregão.

"As (sic).......(em branco) dias do mez de.........(em branco) do anno de mil setecentos sincoenta e nove na secretaria deste governo em prezença do Ill[ustríssimo] e Exc[elentissi]mo S[e]n[ho]r Luiz Diogo Lobo da Sylva Governador e Capitam General destas Capitannias aonde veyo I. e F. nomiado o primeiro para Director da Nova V[il]a de tal, e o segundo para M[estr]e da eschóla da mesma aonde pelo d[it]o Governador lhe foi dado o Directorio, porque os devião regular, e cartilha para a instrucção dos meninos, encarregandolhez, que bem e verdadeiramente (fl. 44v) mente procuracem com toda a inteyreza cada hum na parte que lhetoca seguir em tudo o refferido Directorio, e cartilha gradualmente segundo a natureza doz habitadores a que sederegião as refferidas instrucçoenz o permetissem fosse conducente a civilizaloz como sepertende, para o que lheslembrava Ser percizo obrigalloz quanto fosse justo pelos meyos da brandura, e suavidade, a fim de que ajudados com a sua doutrina vencão as trevas da ignorancia em que seachão embolvidos, (sic) para com o conhecimento da razão, e do beneficio, que Se lhes seguia venhão com facelidade a não lheser custozo os justos meyos, que selhe offerecião para a sua mayor utilidade temporal, e espiritual, e que ellez Director, o mestre tem a mayor gloria, e devem trabalhar com osseu exemplo a conseguila na certeza de ser o meyo mais efficaz para senão afastarem da nova regularidade, que pelos seuz empregos ficão na obrigação de lhes propôr; e de como assim o prometerão executar, e de não tirar dos ditos habitadores directa, ou indirectamente couza alguá, alem do que pelo mencionado Directorio lhe hé premetido, que só receberão emq[uan]to S[ua] Mag[estad]e Fidelissima houver por bem a sua observancia, e concorrer quanto couber a fazer (fl. 45) interter entre ellez as leys do podôr, e honestidade embaraçando toda a liberdade, que possa ser de maó exempLo a conservação desta tão esencial virtude seobrigarão na parte, que lhes hé licita, e permetida, como a tudo o mais que fica refferido, o que tudo jurão não faltar de observar na forma expressada, de que mandey fazer este termo, que os mesmos asignarão para a todo o tempo constar onde necessario for”.

Outro documento contém a citada Cartilha que se reproduz na seção documentos da Revista HISTEDBR on-line. É uma cartilha simplificada, destinada a facilitar o ensino aos índios, não esquecendo as instruções da doutrina cristã, misturadas em meio às regras gramaticais. Obedecendo instruções, adotava-se o “livro de Andrade”, isto é, de Manoel de Andrade Figueiredo (1722, 156p), escrita em 1718 e publicada, depois das devidas licenças, em 1722. A Cartilha foi feita por um padre francês, cujo nome não é declarado, mandada elaborar pelo Governador de Pernambuco.

Por ela tem-se idéia de como era o ensino ministrado aos meninos índios, bem como as noções da doutrina cristã. Essa cartilha serve, não só para esse conhecimento, quanto é excelente documento para estudos lingüísticos.

Ao contrário do que se possa pensar a alfabetização dos índios foi colocada em prática, existindo vários relatos, especialmente dos Ouvidores, dando notícias das condições em que se encontravam os meninos e meninas, tanto aqueles que frequentavam as aulas, quanto os que trabalhavam como oficiais mecânicos.

É certo que houve a instalação tardia das Aulas Régias, entretanto, as notícias havidas de diversas regiões do Brasil davam conta de que a tarefa de instruir os meninos e meninas estava se cumprindo, não da forma programada, mas de maneira, muitas vezes, improvisada, devido as circunstâncias de cada vila, povoação, aldeia ou lugar.

O segundo ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, no processo de civilizar os índios, tirava-os ainda pequenos de seus pais para afastá-los do que chamava “quase congenitos vicios” e para que esquecessem a língua materna. Em 1771 dizia: “ha escola em que aprendem a ler e escrever 80 meninos e por acaso não há mestre oficial de oficio mecanico que deixe de ter algum por aprendiz e dos maiores os mais rusticos a soldada”.

Em outros relatos desse ano e do ano seguinte, o referido Ouvidor torna a falar no processo civilizatório, ressaltando os resultados positivos que vinha obtendo. Em 1773 escrevia que os mais velhos usavam ainda da língua bárbara, “reprimindo-lha no publico o temor do castigo, mas praticando-a sempre no particular e maiormente com os filhos, que tem na sua companhia, porque dos que lhes tirei para a dos mestres e amos, tanto mais pequenos, tanto mais se veem esquecidos dela”. E continuava: “Serão perto de 400 os que atualmente existem de um e outro sexo distribuidos a oficios e soldada pelas casas dos mesmos brancos”. No ano seguinte comunicava que grande parte dos índios já andava de calção, morava em casas cobertas de telhas e providas de móveis como a dos brancos, e que alguns dos que se tinham iniciado no aprendizado de ofícios mecânicos chegavam já a “trabalhar por fora independentes dos mestres”. Existem no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, conjuntos de pequenas folhas de papéis, com exercícios caligráficos de índios alunos do Amazonas e de São Paulo, junto com finos fios de algodão e amostras de rendas.

Em outros núcleos, por vezes, especialmente na região amazônica, foram forçados a se reunir índios de etnias diversas e que, em consequência, falavam dialetos diferentes. Em alguns casos, a língua portuguesa serviu para unificar esses povoadores. O mais frequente, no entanto, nesse caso, foi a presença de um intérprete – o língua – que podia ser de origem a mais diversa possível: índio fugido ou civilizado, negro fugido, soldado, letrado, etc., etc.

Texto de Maria Helena Ochi Flexor

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