segunda-feira, 8 de julho de 2013

SINAIS DE ESPERANÇA


Nos dias atuais, se pode notar por toda América Latina e Caribe, um grande movimento de ascensão das lutas indígenas. Tem chamado a atenção do mundo inteiro, nos últimos anos, o fortalecimento das mobilizações no Equador, onde o movimento indígena foi capaz de enfrentar o governo com greves nacionais que pararam o país. Duas províncias são governadas atualmente por lideranças do movimento indígena, como a Província de Chimborazo, e já se pode sentir algo como um modo indígena de governar, através das assembléias comunais e da ampla participação da população na reorganização de todos os setores da vida social. Lembro aqui também a vitória do movimento indígena na Bolívia, que depois de séculos de resistência, conseguiu eleger, democraticamente, Evo Morales, um líder oriundo do campesinato indígena e que começa a redirecionar as prioridades das políticas nacionais, imprimindo um sentido de esperança e renovação da vida das populações marginalizadas daquele país. A proposta de uma Assembléia Constituinte para reformar a Constituição do país se insere nesse amplo processo de mudanças democráticas.

O grande desafio posto a teólogas e teólogos cristãos que refletem a partir das dores de parto da terra (Romanos 8.22) é considerar os povos indígenas não como fornecedores de ilustrações nem como objetos de estudo, senão como produtores de um saber que a modernidade e o avanço tecnológico nos arrebatou e que cremos poder recuperar.

Há três aspectos a partir das teologias indígenas que estão em sintonia direta com as teologias ecológicas e que são importantes para o nosso debate:

a) Poder ecológico – Os povos indígenas estão conscientes de sua história, sua identidade e seus projetos de vida. Estes projetos são diferentes da maioria dos projetos nacionais no continente americano. Eles demandam reconhecimento e o direito a essa diferença, sem que isto redunde em sua marginalização nas sociedades nacionais. Eles percebem que a pluralidade religiosa, linguística e cultural na qual vivem é mais ecológica do que a monocultura implantada pelos conquistadores europeus e continuada pelo sistema dominante do capitalismo financeiro e neoliberal contemporâneo. Os povos indígenas comparam sua reserva de alteridade como um jardim de flores, cujo perfume eles desejam compartilhar com as sociedades não-indígenas.

Esta sensibilidade ecológica demanda mais que boas intenções. Demanda uma nova visão da vida e do sentido da vida humana neste mundo que recebemos de nossos ancestrais. O poder ecológico nos conecta com o novo futuro e com nosso passado histórico e é o grande desafio no presente.

b) Interdependência – Para os povos indígenas tudo está interrelacionado e só pode ser entendido dentro dessa relação. Por exemplo, para o povo Kuna, do Panamá, o que chamamos fraternidade é traduzido por “cosmo-sentimento” e os outros seres da natureza estão ligados às pessoas por laços familiares. Cada coisa está relacionada com a outra, de modo que onde um elemento termina, outro começa.

Tal interdependência ocorre entre as pessoas, entre as pessoas e seus povos, e entre as pessoas e a própria natureza. Não é por acaso que certos povos indígenas usam – para expressar esta complementaridade – expressões de magnificência para designar os seres sobrenaturais. No caso dos Guarani, por exemplo, eles dizem: “Nosso Digno Pai – Nossa Digna Mãe”, ou “Deus Mãe-Pai – Deus Avô-Avó”, ou ainda “Excelsos Verdadeiros Pais das Palavras – Excelsas Verdadeiras Mães das Palavras”.

O mesmo se passa com a interrelacionalidade humana. A referência para os seres humanos que os especifica é masculino e feminino. Assim, os povos indígenas contemporâneos são chamados de “descendentes de mulheres e homens sábios” ou “filhos e filhas da Terra” ou ainda “filhos e filhas da boa palavra”. Esta linguagem reflete algo das relações humanas da comunidade e das suas experiências sociais e religiosas.

c) A centralidade da terra – Terra é vida e por causa disso a Terra está no centro da atenção, da preocupação, da celebração e reflexão de todos os povos indígenas. Um líder do povo Kulina, com o qual eu trabalhei muitos anos atrás na região Amazônia do norte do Brasil disse certa vez:

O sol nasce,
o sol se põe.
Kulina vai ficando velho,
mas a terra não.

A terra é sagrada, ela não pode ser comprada nem vendida, ela só pode ser possuída coletivamente. A expressão “Mãe Terra” não indica apenas o solo debaixo dos pés, mas tudo o que existe e sustenta a existência.

Por exemplo, em diferentes povos indígenas não existe o conceito de propriedade. Quando eu trabalhei com os Kulina junto com minha esposa Lori Altmann, apoiamos decididamente a luta dos Kulina pela terra como garantia de um território coletivo, uma terra demarcada oficialmente que permitisse a sobrevivência futura desse povo. No diálogo com as lideranças indígenas descobrimos algo muito interessante: na verdade, esta luta era uma concessão indígena diante da invasão que sofreram e dos perigos que representavam para eles a convivência com os brasileiros não indígenas. Pois, do seu ponto de vista, era um absurdo demarcar uma terra como território exclusivo ao modo de uma propriedade. Perguntei certa vez por que e a resposta foi a seguinte: Kulina toma conta da terra onde seus antepassados viveram! Tomar conta é como administrar, cuidar, proteger, modificar, mas jamais transformar em objeto de lucro ou negócio. Não existe propriedade para os indígenas! Cada comunidade tem o direito de cuidar e transitar por um determinado território necessário à sua sobrevivência e reprodução social. Fora disso, a terra não pertence a ninguém nem poderia ser objeto de compra e venda, por exemplo. Não se acuse aos indígenas de esquerdismo, socialismo ou coisa parecida. É que para sua mentalidade a terra é um dom do Criador e de seus antepassados e assim deveria ser para sempre.

Hoje em dia, muitas comunidades indígenas foram desterradas de seus lugares de origem, vivem acampadas nas periferias das cidades ou espalhadas ao longo das estradas. Outras se encontram como fugitivas em sua própria terra, pois suas aldeias são invadidas por latifúndios, usinas hidrelétricas, oleodutos, estradas, linhas elétricas de alta tensão, etc. Por isto, a luta pela terra é uma necessidade urgente. Uma liderança Quechua, Ángel María Ibadango, do Equador, disse que a luta pela terra é defender a vida de comunidades ameaçadas de extinção, é dar forma à insatisfação de Deus diante dos inimigos da terra. Por isso nos eventos da teologia índia se vem criticando duramente as instituições e organismos neoliberais. De fato, ressuscitados das ruínas da história, os povos indígenas desafiam a teologia cristã monocultural e dominadora a depor as armas de sua soberba e a começar a escutar mais e mais, a manter um diálogo na busca por mútua compreensão, pois só existe um novo futuro para eles se pudermos viver juntos num só mundo.

Cabe aqui uma observação prévia. Os povos indígenas não são isentos de fragilidades e limitações como toda sociedade humana. Na linguagem da teologia cristã, eles também conhecem o pecado. Há todo tipo de problemas que encontramos em outras sociedades como a inveja, a raiva, o preconceito, o desprezo pelo outro, a avareza. A questão não é, portanto, considerar estes povos como se vivessem na mais pura inocência. Além disso, há o fato de que existem moralidades diferenciadas entre o que se considera justo e verdadeiro para os povos indígenas e para a sociedade ocidental. A palavra, por exemplo, é sagrada para os povos indígenas. Já a propriedade, não. O que desejo enfatizar aqui é a sua contribuição para formas alternativas de vida e de construção de sentido para a existência humana neste mundo ameaçado em que vivemos hoje.

Solidariedade, reciprocidade, comunitariedade e interdependência, estas palavras podem ser conectadas com a utopia indígena da terra sem males dos Guarani da América do Sul.. Há duas interpretações dessa utopia. A primeira, fruto do medo provocado pela destruição da terra devido à invasão colonialista, fez com que muitos grupos caminhassem até o interior do continente, bem longe do mar, até chegar o momento de ascender às regiões celestes através dos rituais e cantos e alcançar a terra plena, onde não haverá nem morte, nem dor. Mas esta interpretação precisa ser corrigida por outra, mais realista e de acordo com as lutas indígenas atuais.

Para os Mbyá-Guarani contemporâneos a terra sem males é uma terra boa e fértil, um lugar guardado e protegido, onde existem plantas e animais que formam o mundo original dos Guarani e onde até as próprias pessoas experimentam condições favoráveis para uma vida em plenitude. Esta terra produz não apenas o alimento necessário à vida, mas também inspiração para rezar e cantar. E para alcançar esta terra os Guarani caminham. São povos que estão a caminho em busca de uma terra sem males. Vivem numa grande região entre o oeste e leste brasileiro, o leste do Paraguai e o noroeste da Argentina. Sua luta é reconquistar espaços de vida, restos de terras tradicionais em que possam desenvolver seu modo de ser específico. Buscam lugares protegidos pela legislação para que não se tornem mão-de-obra escrava de empreendimentos agrícolas baseados na monocultura da soja ou da cana de açúcar. Nessa terra as comunidades poderão viver a solidariedade que se realiza por meio da reciprocidade, do dar, receber e retribuir típico em muitos povos. Na comunidade se poderá viver a plenitude da interdependência que garante não só a sobrevivência, mas fundamentalmente a alegria de viver.

Um canto Mbyá-Guarani expressa esta demanda indígena como segue:

A nossa terra
Devolvam, devolvam
Nossa terra que vocês tomaram
Para que nós continuemos vivendo.

Como o afirmou a teóloga Graciela Chamorro, a terra sem males não é apenas um lugar teológico para os Guarani, é também o fato de “estar a caminho”. “Quem não põe o pé no caminho não pode pretender a terra sem males”, afirmam os sábios deste povo.

Conclui Chamorro: “Quem está no caminho e mantém minimamente o modo de ser guarani enfrentará provas, inclusive alimentícias. Somente aqueles que, apesar das provas, permaneceram fiéis, somente aos que protagonizaram um bom caminho [...], será revelado o rumo que devem seguir para chegar à terra sem males”.

Texto de Roberto Zwetsch

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