sábado, 20 de outubro de 2012

ATY GUASSÚ – A GRANDE ASSEMBLÉIA GUARANI



Para os Guarani, os delitos têm sua origem no sobrenatural, não sendo necessariamente dependentes da vontade do indivíduo. Há uma convicção nisso, de modo que a figura do Nhanderú, o pajé, é central no processo de manutenção da ordem. Sobretudo porque não se trata de uma ordem meramente social, de convívio, e sim de uma ordem cósmica, vigiada por Nyanderykeý, aquele que cuida da terra.

Diante dos delitos menos graves, é o próprio chefe político que dirime o conflito, assim que este emerge no tecido social. O castigo ou punição, em tais casos podem ser trabalhos comunitários, mas dependendo do delito cometido, o que ocorre é a mera censura pública. Por outro lado, no caso de delitos graves, como o homicídio, por exemplo, o equilíbrio e a ordem cósmica são profundamente abalados, colocando a aldeia em perigo: o evento significa que existem espíritos malignos à espreita.

Assim, enquanto para a sociedade hegemônica o crime de homicídio é uma violação à ordem social e a subtração do direito de viver de um determinado ser humano, dotado de dignidade, para a sociedade Guarani tal ato é uma violação que compromete a integridade e existência de toda uma comunidade, podendo inviabilizar a continuidade de suas práticas diárias. Dessa forma, demanda a adoção de medidas mais severas que as aplicadas em delitos menos graves; a mais alta instância do Direito Guarani deve ser acionada: o ATY GUASSÚ (Grande Assembléia), que corresponde a um ritual semelhante ao que os preceitos jurídicos ocidentais definem como julgamento.

Em razão de o ato transgressor afetar a todos, pois gera o desequilíbrio cosmológico, a prática da jurisdição entre os Guarani Mbyá não é monopolizada por um grupo especializado, mas exercida pela comunidade, no Aty Guassú, que constitui, dessa forma, uma espécie de juízo holístico, ou jurisdição holística. (MOREIRA, 2005).

Essa Grande Assembléia, o Aty Guassú, é composta pelas autoridades religiosas e políticas de outras aldeias e por todos os integrantes da comunidade onde a ocorrência do crime causou o desequilíbrio. Mas não se trata de uma assembléia qualquer, e sim a mais importante das assembléias Guarani, pois representa um diálogo com os Deuses.

Com a detenção do acusado e a comunicação do fato às aldeias vizinhas, dá-se inicio à Grande Assembléia, que terá sucessivas audiências, nas quais serão pronunciados discursos imbuídos de conteúdos sagrados e fórmulas rituais, em geral cantos que aludem aos valores comunitários e à forma de vida correta. O acusado de praticar o homicídio ouve os discursos, amarrado e sem comer e beber enquanto durar seu julgamento.

Durante o Aty Guassú os primeiros a falar são as maiores autoridades: o líder religioso e o líder político, que não são interrompidos em hipótese alguma, bem como não há limitação de tempo. É nesse momento que se pronunciam “As Belas Palavras” que, de acordo com Clastres (1990), são para os Guarani as palavras que servem para se dirigir aos Deuses. Belas e agradáveis à audição dos espíritos divinos, as falas sagradas, embriagantes por sua grandeza, arrebatam a comunidade inteira através dos sacerdotes inspirados, que repreendem o mal e reforçam a grandeza dos verdadeiros homens (Clastres, 1990).

Trata-se de um processo de purificação, purgação, pois se entende que naquele momento o criminoso amarrado não é um Mbyá, e sim o espírito maligno, causador da morte de um parente da aldeia. Por isso, sempre haverá uma pena, não há absolvição, pois somente os deuses podem absolver o causador de uma ruptura.  Às pessoas cabe aplacar os deuses, para que o mal seja contido.

Durante o ritual, ocorre a mediação entre o ato delituoso e o dano efetivamente causado. As provas são organizadas e os atores envolvidos na trama, tanto as testemunhas, quanto os familiares da vítima têm espaço para falar. O ritual é um evento de extrema importância para o grupo, não em função do julgamento em si, mas, sobretudo, pelo que representa para os Mbyá enquanto sociedade: trata-se de um momento em que se procura recordar os valores da comunidade, atualizando o pacto social que restabelece a unidade do grupo. A memória da tradição é renovada ritualmente a fim de proteger e assegurar o cumprimento dos rigorosos códigos morais, instituídos pelos deuses.

Ao final do julgamento não se busca simplesmente apenar o causador do delito, e sim extinguir o espírito maligno. A pena é secundária, a importância maior está na personificação do mal. O que se quer é restabelecer o equilíbrio das relações com o mundo dos ancestrais. Assim, mesmo no caso da pena capital, por exemplo, é possível encontrar alternativa para seu cumprimento que não necessariamente a morte física: trata-se do banimento. Com o banimento do convívio, que é a morte social da pessoa, não se deseja com isso a vingança ou a compensação da dor em função da perda, o que se pretende com tal sentença é abortar o mal maior que pode recair sobre a comunidade. (MOREIRA, 2005).

Para os Guarani, o desequilíbrio causado pelo delito só pode ser neutralizado se forem seguidas as regras ditadas pelo Nhanderuvuçú (Nosso Grande Pai), regras que são a origem sagrada do Direito Guarani. Os procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo Grande Pai após o primeiro desequilíbrio (narrado no mito dos Gêmeos – Kuarahy e Jacy), são o meio de evitar e de aplacar esse desequilíbrio.

O fundamento último do Direito Guarani são as regras e os procedimentos ditados pelo Nhanderuvuçú, que são também a origem da religião. É a mitologia sagrada que legitima o Aty Guassu, onde se lembrará a todos a verdadeira forma de viver, assim como todas as regras jurídicas Guarani. Nesse sentido, Moreira (2005) afirma que durante o Aty Grassú fica demonstrada a combinação binária de legalidade, que possui uma dupla fonte: a lei perfeita do Grande Pai e a cópia imperfeita desta, que é a lei da comunidade.

Considerando o contexto cultural dos Guarani Mbyá, compreende-se porque estes não vêem sentido algum nos procedimentos jurídicos praticados pela sociedade envolvente. Pois seja qual for a sentença dos brancos a um Mbyá, que tenha com seus atos contaminado o seu povo, sua punição individual jamais será aceita pelos Deuses: o mal permanecerá à espreita. Apenas por meio do Aty Guassú os demônios, o mal, pode ser personificado, punido e banido, restabelecendo o equilíbrio da aldeia.

O sentido do Aty Guassú, além da resolução do próprio conflito instaurado, por conta da desobediência de um dos membros do grupo, é, portanto, a reconciliação da comunidade com os Deuses ofendidos. Por essa razão é tão importante que os procedimentos rituais e religiosos, ensinados pelo Nhanderú, o líder espiritual, sejam observados com rigor. Somente com os rituais de dança, canto e orações preparatórias para o caminho expiatório é possível a reabilitação social do grupo; a contaminação comum originada pelo delito é então expulsa ou purgada: voam para a velha cabana os Morcegos Originários, demônios das trevas.

Texto de Maria do Socorro Lacerda Lima e Estella Libardi de Souza

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