quarta-feira, 14 de setembro de 2011

TENTENVILÚ e CAICAIVILÚ

De uma terra desaparecida pode às vezes nascer uma nova terra, ainda mais bonita, ainda mais vasta. Pois foi o que aconteceu, no tempo em que o mundo hesitava em escolher sua fisionomia, numa pequena ilha do que hoje chamamos de Chile.

Lá, a vida se passava calmamente porque os moradores desse lugar jogado como uma pedra no oceano sabiam estar protegidos por um ser cheio de bondade, a que chamavam de TENTENVILÚ ("tenten" = terra; "vilú" = cobra). Tratava-se de uma cobra que vivia bem no alto de uma colina coberta de arbustos e pradarias. Se alguma tragédia acontecia, logo iam ver Tentenvilú, que, quando não conseguia curar ou aliviar, podia ao menos consolar os corações agarrados nas malhas do sofrimento.

Assim como os humanos podiam tudo esperar de sua bondosa Tentenvilú, assim também tinham tudo a temer de CAICAIVILÚ ("caicai" = mar), uma serpente terrível que morava no oceano, no fundo de abismos insondáveis. Se há várias gerações ninguém o via com os próprios olhos, suas histórias continuavam muito vivas e assombravam, fosse ou não lua cheia, os pesadelos das crianças e adultos. Fazia tempo que ninguém a avistava, mas isso em nada atenuava o pavor que ela provocava. Muito pelo contrário: quanto mais antigas eram suas lembranças, maior era o medo que inspirava. Os moradores da ilha sabiam que não escapariam a seu ataque; sabiam que Caicaivilú tinha jurado a morte deles e que fatalmente cada dia que passava os aproximava da sombria data.

Na verdade, Caicaivilú considerava-se traída pelos humanos pois, no início deste mundo, eles viviam sob sua proteção, debaixo das ondas. Depois ficaram de olhos nas terras emersas. E, de comum acordo, preferiram abandoná-lo e se instalar naqueles lugares que consideravam muito mais acolhedores que o mar.

Como Caicaivulú escolheu o dia? Que acontecimento provocou-lhe uma raiva maior que as outras? Ninguém jamais soube. Numa noite de tempestade, quando o céu e o oceano pareciam um só corpo, tão líquido quanto furioso, as ondas atingiram uma altura até então desconhecida. Como se não bastasse, a terra se sacudiu como um animal que procurasse se livrar de um intruso agarrado em suas costas. As pessoas que ainda estavam vivos se precipitaram para a colina de Tentenvilú. De fato, não só a cobra morava no único lugar elevado da ilha, mas sobretudo aquele povo aflito esperava que ela pudesse fazer alguma coisa para salvá-lo.

Tentenvilú ficou arrasado com o espetáculo que acabava de descobrir. Logo usou seu poderes para se opor a Caicaivilú. Ordenou à terra que se enrugaasse em vários lugares, a fim de que se erguesse uma sucessão de montanhas onde os sobreviventes poderiam ficar fora do alcance das ondas.

Mas Caicaivilú era poderoso. Como quem levanta um exército furioso, ele produziu ondas de uma altura ainda mais inacreditáveis. Assim, algumas pessoas que tinham conseguido se abrigar sob os rochedos foram jogados fora dali. Sem desanimar, Tentenvilú pediu à terra que amarrotasse ainda mais a sua casca e levantasse montanhas bem mais altas.

A isso, Caicaivilú respondeu com um furacão de espuma que matou muitos dos sobreviventes. Será que acreditou que tinha eliminado todos os homens? Será que considerou sua vingança como terminada? Talvez... O fato é que deu ordens ao oceano para se acalmar e desapareceu no fundo da imensidão líquida. Aqui e ali boiavam os corpos sem vida daqueles que tinham sido pegos na cilada do dilúvio infernal.

O coração de Tentenvilú era incapaz de suportar a visão de um espetáculo desses. Ficava apertado diante daquelas imagens de um paraíso destruído. Explorando os imensos recursos de sua magia, transformou todos os mortos em focas muito vivas. Em seguida, tranquilizou-se com a sorte deles, virou seus olhos para a terra, que se tornara irreconhecível. Entre as montanhas que ele levantara para salvar a humanidade, tinha aparecido enseadas, baías e canais. Cada montanha se tornara uma ilha separada de suas irmãs por um braço de mar. Um arquipélago acabara de nascer do confronto entre as ondas e a terra.

Passou-se muito tempo antes que os raros sobreviventes ousassem sair de seus esconderijos para passear em pleno sol. Mas, depois de muita hesitação, acabaram saindo. Primeiro, com prudência, só se afastando alguns metros; depois, como a fome queimava cruelmente suas barrigas, atreveram-se a sair até as praias. Quando estavam colhendo conchas, viram chegar curiosos peixes nadando no rastro das focas, cujo comportamento era muito estranho. Em vez de fugir da companhia dos humanos, esses animais pareciam querer se aproximar deles e soltavam gemidos dilacerantes quando os habitantes do arquipélago se afastavam.

Foi preciso que a ampulheta do tempo virasse muitas vezes sobre si mesma antes que o povo da ilha compreendesse que aquelas criaturas do mar eram, ninguém menos, que seus antigos irmãos, filhos, pais e amigos. Da mesma forma, compreenderam que continuavam a sê-lo apesar da nova aparência. Então todos encontraram aquele ou aquela que antes amavam, e logo nasceram filhos desses estranhos amores entre a terra e o mar.

Se de inicio esses filhos forma metade humano, metade peixe, os que nasceram mais tarde pareciam cada vez mais com os habitantes da terra.

E só no olhar que hoje dirigem ao mar que podemos ler o ínfimo traço dessa filiação marinha.

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Mitologia chilena mapuche narrada por Anne Jonas.

Em 1960, um grande terremoto seguido por intenso maremoto destruiu toda a costa do Chile. Em várias montanhas e escarpa ao longo do litoral, grupos de chilenos se reuniram para fazer rituais que acalmassem Caicaivilú. Fizeram-no virando-se para as altas montanhas dos Andes, chamando pela ajuda de Tentenvilú. Alguns desses rituais foram colhidos e estudados pelo antropólogo norte-americano Patrick Tierney.

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