quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O SOFRIMENTO DOS WAIMIRI-ATROARI

O acidente geográfico mais importante ao norte de Manaus é o rio Urubu – antigo Bururu. Ali tem um pequeno afluente chamado Igarapé Sangai. Em época de vazante, nota-se várias inscrições rupestres, de formatos os mais extravagantes. Não constitui novidade a existência desses petróglifos na região. Cada garatuja, normalmente é ligada a uma superstição correspondente. É por esse motivo que o trânsito de pessoas e de embarcações por ali é reduzido, especialmente de noite. Mas há uma pedra no Sangai que impressiona mais que as outras. Ela representa um enorme olho humano, bem aberto, que parece controlar viajantes e intrusos. Parece uma sentinela ameaçadora. Os caboclos que são obrigados a passar por ali chegam quase a estado de pânico; abaixam a cabeça e ficam encolhidos, hirtos, até que a canoa deixe para trás o beiradão.

Os riscos esculpidos são grossos e esbranquiçados, contrastando com o cinza-chumbo da pedra. Destaca-se de longe. Estão intactos, bem visíveis, cobertos de musgo, atestando que ninguém teve a ousadia de macular ou desfigurar o misterioso olho-vigia.

Pesquisas da documentação do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, revela que ali foi palco da maior matança de índios que já houve na Amazônia. No século XVII, Pedro da Costa Favella passou pelo local, incendiando 300 aldeias e trucidando mais de 700 silvícolas de ambos os sexos e de diferentes idades.

O comandante Favella, com fúria que lhe toldava a alma, levou quase ao extermínio os Caboquena, os Guanevana, os Bururu e, mais para o norte, os Waimiri e os Atroari. A floresta se agitou em tropelias nunca dantes imaginadas. De um lado o trocano (tronco oco usado como “telégrafo” na selva) ressoava um gemido oco de horror e, de outro, os arcabuzes portugueses ribombavam um estampido homicida. As noites tranqüilas da selva equatorial ficaram iluminadas, mostrando a gengiva escarlate das barrancas. Tudo era destruição – a Morte!

Há um remanso soturno onde foram jogados, só de uma vez, mais de 300 cadáveres de “bárbaros pagãos”, castigados severamente pelo crime de serem os legítimos donos da terra. Gente de pele bronzeada só sobrevive à medida que pudesse fugir. Velhos, mulheres e crianças eram caçados como bichos. As águas do rio Urubu, de negras que eram, tornaram-se rubras e mal-cheirosas. As terras ficaram ensopadas de sangue. Cerca de 400 jovens foram acorrentados e arrastados para as masmorras de Belém ou do Maranhão. Tudo era válido para o branco: violentar a mulher e martirizar o varão daquela “maldita raça tapuia”.

Não demorou muito, por ali só restou a dor e a miséria. Os Waimiri e os Atroari, grupamentos outrora prósperos e felizes, chegaram quase ao extermínio. Só restou a maior de todas as dores: aquela expressa pelo silêncio.

Foi então que dois pequenos grupos de índios remanescentes – um Waimiri, outro Atroari – resolveram se unir. Juntaram-se para tentar uma quase impossível sobrevivência. Depois da carnificina ter levado os brancos à exaustão, eles foram embora.

Uma meia dúzia de selvagens, desmoralizados, aos poucos foram reconstruindo as suas malocas, as suas canoas e firmando a tradição ancestral. Depois, selaram um pacto. Fizeram um juramento solene, ao lado daquela ameaçadora inscrição do Sangai: mil vezes prefeririam a morte a confraternizar com o branco! Surgiu a crença de que, a partir de então, aquele olho escancarado, esculpido na pedra, se tornou o símbolo da vingança e o fiscal implacável do fiel cumprimento do compromisso assumido.

À noite, o olhão abandona a pedra, que dizem ficar inteiramente lisa; como um cometa luminoso, desloca-se por todos os confins do sertão, estando sempre presente onde existir um Waimirin-Atroari. Se encontrar algum índio em colóquio com o branco, a qualquer pretexto, o olho chama PAVELA, um monstro coberto de couro de onça e dotado de grandes olhos incandescentes.

Pavela, o “Demônio”, o “Espírito do Mal”, não se importa com o branco; só castiga o índio, deixando-o derreado a golpes de borduna. Pavela, na onomatopéia simplista do índio, é a evocação da alma assassina de Pedro da Costa Favella. De geração em geração, vem se mantendo a crença de que Pavela, até hoje, não perdoou índio algum que tenha cometido a imprudência de se aproximar do branco – o inimigo jurado.

Assim, perdura o ódio secular ao caríua (branco). É a vingança à ação das tropas de resgate que tanto mal causaram aos índios e tanto macularam as suas tradições. O juramento de Sangai e o mito de Pavela transitaram por todas as gerações de índios, até nossos dias.

As agressões do branco não ficaram apenas naquelas malfadadas expedições de resgate do passado colonial. Em 1856, ocorreu um outro grande massacre contra os Wailmiri-Atroari, do qual se tem registro. Manoel Pereira de Vasconcelos, comandando 50 homens, percorreu a região eliminando dezenas de índios e incendiando todas as malocas que encontrou.

Em 1874, o tenente honorário Antônio de Oliveira Horta, comandante do destacamento policial de Vila de Moura, numa sanguinária expedição punitiva eliminou mais de 200 índios.

Em 1905 ocorreu outro cruel massacre. O grupo do capitão da Polícia Militar do Amazonas, Júlio Olympio da Rocha Catingueira, a mando do Governador Constantino Nery, percorreu o Jauaperi, deixando 283 cadáveres espalhados pelos barrancos, e conduzindo para Manaus, como prisioneiros-troféus, 18 índios. Estas pobres criaturas foram alvo da curiosidade pública, enquanto o capitão Catingueira era ovacionado como herói. Os 18 índios ficaram presos no então quartel de Infantaria da Policia Militar do Amazonas. Foram obrigados a se uniformizar como soldados e submetidos a ordem unida. Dos 18 prisioneiros, 6 morreram logo de desespero, doenças e maus tratos. Felizmente, o Coronel Euclides Nazaré, condoído com a sorte dos 12 remanescentes, levou-os consigo até a Vila de Moura e, de lá, num gesto humano que dignificou, o seu nome para a posteridade, mandou soltá-los no Jauaperi.

Em 1949, 72 índios Waimiri-Atroari foram barbaramente trucidados por caçadores de jacaré, que tiveram o cinismo de declarar à imprensa que matar até 10 índios para cada exemplar de sáurio abatido era ainda “negócio”...

Com esta curta amostragem de um verdadeiro rosário de sofrimento e humilhação, os Waimiri-Atroari sustentavam, cada vez mais, o seu juramento de ódio ao branco e o de morrer em defesa de seu território.

Em época mais recente, a insistente cupidez do branco pelas suas terras, a pilhagem de madeira, de castanha e do pau-rosa; o avanço célere da estrada, atravessando a sua Reserva e dizimando a sua caça de subsistência; a indiscrição dos “pássaros de ferro” (aviões e helicópteros); o barulho ensurdecedor de motores e máquinas, dia e noite, levando de arrasto terra, árvores e pedras; a chegada estrepitosa de poderosas empresas mineradoras, de olho nas incomparáveis jazidas já identificadas na região, tudo isso, punha-os em permanente estado de desassossego. Eles temiam que o “civilizado” estivesse fechando o cerco de seu território, encurralando o seu povo e aperfeiçoando os instrumentos de tortura e de rapina referidos pela tradição. Daí o seu estado de desespero e a sua disposição permanente de guerra total. É claro que sempre levavam a pior.

Assim, tudo contribuiu para dificultar o trabalho das equipes de desmatamento e terraplanagem da BR-174. Em nenhuma época da história e em qualquer outro lugar de nosso território, houve similar fricção entre bancos e índios. Nunca o estabelecimento do contato foi tão precipitado e jamais o preço da conquista foi tão caro em vidas humanas, em sangue e em lágrimas.

Texto de Altino Berthier Brasil, em 1968

--------------------------------------

Os Waimiri-Atroari, durante muito tempo, estiveram presentes no imaginário do povo brasileiro como um povo guerreiro, que enfrentava e matava a todos que tentavam entrar em seu território. Essa imagem contribuiu para que autoridades governamentais transferissem a incumbência das obras da rodovia BR 174 (Manaus-Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou de forças militares repressivas para conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo kinja (autodenominação waimiri-atroari). A interferência em suas terras ainda foi agravada devido a instalação de uma empresa mineradora e o alagamento de parte de seu território pela construção de uma hidrelétrica. Mas os Waimiri Atroari enfrentaram a situação, negociaram com os brancos e hoje têm assegurados os limites de sua terra, o vigor de sua cultura e o crescimento de sua gente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário