domingo, 25 de abril de 2010

KELKATANI... a pedra escrita

Chichillapi é uma comunidade andina, a 4.300 metros de altitude e a 150 quilômetros do lago Titicaca, no final de um caminho medonho chamado de "penetração". Nos seus arredores encontramos cavernas rupestres que ocultam a raríssima mensagem dos "Fundadores do Mundo", no antigo santuário de KELKATANI - em aimara, "pedra escrita".

A caverna e a rocha pintada são uma HUACA - rocha sagrada, respeitada e venerada pelos comuñeros kolla, que a protegem como "santuário de seu mundo cosmogônico". E foi graças a esse culto secular, sempre praticado porém mantido no maior segredo, que a "mensagem" foi protegida de uma provável destruição. Os kallawayas (curandeiros) da região utilizam a "raspa da huaca" na composição de um filtro contra o SUSTO, uma estanha doença do medo que mata o índio dos Andes mais do que qualquer outro mal relacionado pelos médicos ocidentais.

Um frio rigoroso maltrata no interior da caverna, onde o termômetro desce a menos de 5º. É preciso manter um fogo de taquia (excremento seco de lhama) para poder se aquecer e admirar os desenhos. Foi, provavelmente, esse mesmo meio de aquecimento e iluminação arcaico que um grupo utilizou para ocupar outrora a caverna e decorar-lhe as paredes: o PRIMEIRO SANTUÁRIO RUPESTRE DO ALTIPLANO!

A extraordinária mensagem mural ade KELKATANI, de silhueta levemente entalhada, está pintada em "positivo" ou em "negativo", numa larga tela de granito que cobre vinte e seis metros de comprimento por seis de altura. Um pequeno filete de água que corre na gruta, pouco a pouco solapou a base e projetou a rocha para frente; esta inclinação protegeu tão bem as pinturas da erosão que o conjunto está em excelente estado de conservação.


Cheias de vivacidade e de movimento, embora de grande simplicidade, as litografias mostram danças cinegéticas ou de iniciação tribal muito animadas, choques de guerreiros pronto a se defrontarem, expedições de caça em grupo ao longo dos rios ou a erraticidade dos homens primitivos ao longo de pistas sinuosas e acidentadas. Estas ilustrações alternam-se com cenas pastoris repousantes, mostrando o pastor guardando
um grande rebanho de lhamas ou guiando-as em uma longa caravana, o pescoço de um animal preso à cauda da lhama que o precede por uma corda rígida figurada como uma serpente.

As silhuetas humanas são, em geral, apenas esboçadas. Mas a corrida dos camelídeos que tentam desesperadamente escapar do caçador, os animais que titubeiam, cabriolam ou caem feridos têm um vigor extraordinário.

Às vezes o cenário anima-se com alguns fugitivos tarucas - pequenos cervídeos que enchem os cumes das Cordilheiras, em vias de desaparecimento atualmente mas que outrora deviam abundar nesses lugares desérticos. Em outras cenas, um lagarto corre, um caracol se arrasta, uma coruja fascina um grande pernalta e patas de águia, uma raposa de penacho estufado escapa... Distingue-se ainda um felídeo com garras - o puma.

A maioria dos personagens representados trazem uma tanga curta, provavelmente cortada em casca de árvore batida ou em pele de guanaco, ou ainda de caniço, à moda uru. De toda forma, uma vestimenta leve que segue o movimento do corpo. Trazem à cabeça um "boné" com altas plumas em cima. Quando representam uma dança cerimonial, os homens adoram seu peito com colares feitos de grãos e têm braceletes de bolotas nos braços. Em geral, um tufo de penas guarnecem seu torso, às vezes os rins.

Noventa por cento dos animais representados são camelídeos de salto leve: vicunhas rápidas, guancos e lhamas mais pesados, alpacas lanosas e um quinto camelídeo sul-americano, de pescoço muito curto em relação aos outros, frequentemente desenhado em cerâmicas pré-colombianas, mas desaparecido antes da chegada dos europeus.

Esses milhares de pinturas informam que a economia dos povos de altitude repousava quase inteiramente sobre a caça, a domesticação e a criação
desses camelídeos - exclusivos dos altos vales e do Altiplano. Desértico antes, o Kollão (altiplano) cobre-se progressivamente de animais e de pessoas que são vistas, em cenas rupestres, formigar cada vez mais de época em época. Uma civilização florescente que se multiplicaria até a última e monumental cultura de TIHUANACO.

Os afrescos murais mais nervosos e irriquietos descrevem o CHACO, grande caça coletiva que reunião centenas ou milhares de pessoas e que foi, muito mais tarde, retomada e celebrada em grande pompa pelos Inca reinantes. Todos os cronistas descreveram com muitos detalhes estas grandes caçadas imperiais.

Os descendentes daqueles cavernícolas ainda vivem às margens do Titicaca, autodenominando-se CHOKKELA. E ainda hoje revivem o chaco: brandem um bastão, perseguem em corrida as vicunhas desvairadas, mortalmente atingidas; é fácil ouvir os gritos que soltam os homens para espantar e desorientar o rebanho. Animais escampam, outros são transpassados por uma lança, um dardo, uma azagaia ou uma flecha. Dois ou três Chokkela antepassados, pintados no primeiro plano da parede de pedra, armados de um cacete grosso, braços erguidos, calcam aos pés um guanaco caído por terra. Sua dança é frenética! Com se eles quisessem acabar de estraçalhar o despojo do animal. Dele já não resta senão a parte posterior...

Entretanto, representar tão cruamente o caçador que atinge um animal, enterrando-lhe um dardo na carne, reproduzir o pânico e a debandada do rebanho, não é apenas um esboço artístico de amador pré-histórico. Parece tratar-se de um ato de MIMETISMO MÁGICO, que o caçador imagina na esperança de garantir para si, quando de um próximo chaco, a tomada de carne necessária à subsistência mesma do clã que dependia de sua agilidade para sobreviver ou, na falta dela, morrer!

Como pano de fundo, fragmentos de grandes redes de malhas largas. Os Chokkela desdobram essas redes, segurando-as, para formar um imenso círculo volteando um pico inteiro. Progressivamente, a roda se estreitava, aprisionando as vicunhas e os guanacos que outros homens, antes, desviaram para ali e os cercaram.

Magnificos desenhos reproduzem fêmeas de ventre tão pesado que se arrasta por terra, prestes a parir. Obsidiado pelo mistério da reprodução da espécie, o pintor primitivo teve a idéia de figurar, de perfil, dois ou três pequenos no ventre inflado de sua mãe. Este assunto domina a mente do artista, volta sem cessar e o impele a pintar esta religião da fecundidade metológica, comum a todos os antigos povos do mundo.

Uma certeza parece manifestar-se: nas fronteiras do céu, sobre o cume dos Andes, a psicologia do homem do Titicaca, do caçador de guanacos, é a mesma que a do homem da rena ou do bisão, do caçador pré-histórico de mamute, de cervo, de canguru e de outros animais selvagens em outros lugares do planeta.
Baseado no texto de Simone Waisbard

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