quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

MAÍRA

NANDERUVUÇU OU PETEÍ, PYTY AVYTEPY AÑOÜOJICUAÃ
- História da criação do mundo e dos seres -

Antes, só os morcegos eternos voavam na escuridão sem começo. Veio, então, Nanderuvuçu, que se descobriu sozinho a si mesmo e esperou. Chegada a hora, ele juntou as mãos em concha, soprou dentro o seu alento, abriu os olhos e lançou do olhar uma luzinha... Na penumbra daquele ventinho morno, ele foi inventando suas criações.

Começou fazendo as terras altas e baixas, sustentando-as com escoras. Depois abriu rios e lagos. Pôs, então, nas águas novas, as primeiras criaturas: os Juruparis, seus prediletos. a eles deu a flauta-vivente - Jacuí - para terem música; também deu os peixes para pescar e até roçados para comerem com fartura. Os Juruparis mesmos são meio peixes, da cintura para baixo, e meio gente, da cintura para cima. foi também a eles que Naderuvuçu deu a noite que dormia no fundo das águas mais profundas...

O Velho criou, em seguida, os Curupiras, que andam por aí até hoje, escondido nas matas. São gente incompleta. A um falta uma perna; outro tem os pés voltados para trás. Esse tem um olho só; aquele tem olhos fora do lugar. Sua ocupação é comer a alma dos que se perdem à noite na mata.

Só depois dos Juruparis e dos Curupiras, Nanderuvuçu aprendeu a criar gente inteira. Criou, então, nossos avós - os Mairum Ambir. Mas os fez sem maldade nenhuma. Não havia homens nem mulheres, todos eram iguais. E não tinham ânus: comiam e vomitavam pela boca para tornar a comer. Mas todos tinham uma vulva dentada como boca de piranha, que só servia para ter coito com Nanderuvuçu.

O pênis do Velho era uma cobra-raiz que crescia por debaixo da terra. Bastava dar três pancadinhas em qualquer lugar para surgir ali o pênis de Nanderuvuçu, pronta para sururucar. Quem sururucasse, gozava e dava gozo a Nanderuvuçu. Só que, depois, tinha que mijar num pode. Passados cinco dias, aquela urina fermentada criava uma criança pequena como uma piaba, que ia crescendo, devagar, na água que se botava para ele todo dia.

Foi também Nanderuvuçu quem criou os bichos todos. Desenhava com cuidado até gostar. Aí soprava seu alento sobre o desenho e o bicho levantava espantado. Ele ia enxotando, mandando embora - "Xô! Xô!"

Mas não eram animais como os de agora. Todas as criaturas viviam em aldeias e falavam suas línguas como gente. A cada uma o Velho deu uma prenda para ser seu orgulho. O Urubu-Rei recebeu o fogo; o Veado, o sal. Um passarinho azul - o Ouimeê - ganhou a pimenta; o Sapo-Cururu, o fumo. A Irara era a dona do mel; Mutum, do jenipapo; a Aranha, do algodão; a Arara, do urucum. Cada coisa boa era de um bicho, que não repartia com ninguém.

Aquele mundo do Velho não tinha dia nem noite, somente penumbra. E tinha pouca comida. E Nanderuvuçu gostava de fazer brincadeiras duras com suas criações. Só queria divertir-se. Umas vezes mandava um aguaceiro que inundava tudo e as gentes, os bichos e os Curupiras tinham que lutar para não vivarem rãs. Outras vezes fazia chover fogo, as árvores e as macegas queimavam; as gentes, os bichos e os Curupiras passavam muito calor; só os Juruparis, que viviam dentro d'água, não sentiam nada. Fosse o dilúvio de águas ou fosse cataclismo de fogo, eles estavam sempre bem, olhando lá do meio das suas lagoas e rindo muito da luta do povinho. O Velho, esse, então, chegava a perder o fôlego nas gargalhadas que dava. O barulhão das risadas dele era o de trovoadas com raios e coriscos. Enchia de medo o coração daquele povinho.

Um dia, o Velho Ambir quis sentir suas criações. Arrotou e lançou o arroto no mundo para ser seu filho. O arroto girou vagaroso pelos ares, navegando no escuro e olhando as coisinhas mais quentes que pulsavam, vivas, lá embaixo. Viu, então, no meio da penumbra, uns seres maiores que se destacavam, imponentes. Eram as árvores esparsas! Desceu numa delas, entrou bem no cerne. Daí de dnero começou a provar o sentir das árvores. Baixou pelas raízes que desciam e com elas comeu terras e bebeu águas. Ergueu-se, depois, com o tronco ereto, orgulhoso de si, subindo e se esgalhando e se abrindo em ramos. Circulou com a seiva e sentiu, lá em cima, a grande fronde de folhas mil, vibrando ao vento.

Muito tempo esteve Maíra gozando naquele ser esgalhado, folhento, o sentimento de ser árvore. Gostou. Principalmente das palmeiras que sobem eretas para abrir seus leques no mais alto. Dá gosto subir pelo parafuso troncal acima, sentindo a dor das cicatrizes de tantas folhas que morreram para a palmeira crescer e dar cocos.

Daquele capão da mata, Maíra fez nascer outro e depois outro e outros, para sentir mais o mundo das árvores. Assim fez a floresta enorme, a selva selvagem, cobrindo tudo de árvores sem conta. Através delas, sentia as terras de diferentes gostos, os frios das águas subterrâneas, o canto dos rios, a paz as lagoas, mas sobretudo, os ares e seus ventos farfalhantes. Por tempos e tempos, Maíra verdejou, sentindo o mundo como floresta e fazendo a floresta crescer sobre o mundo.

O filho do Velho Nanderuvuçu, multiplicou-se, assim, pela primeira vez, como árvore e floresta. Depois, dizem, experimentou ser vários outros seres. Mas voltava sempre ao grande ser folhudo que lhe dava mais contentamento: a mata. Com ela, se estendia, lançava mais frondes pelo ar; mais caules para ao céu; mais raízes terra adentro.

O filho de Nanderuvuçu estava ali, disperso, quando viu um dia, passar por perto nosso antepassado Mosaingar, que chamou sua atenção. Maíra gostou, quis ver o mundo com seus olhos. Baixou, vestiu-se na pele de Mosaingar e, bem dentro dele, fez para si mesmo um oco, um útero. Lá dentro, sentado, percebeu a simetria dos lados esquerdo e direito - com tudo duplicado, mas diferente, invertido - daquele Avô que seria sua mãe. Sentiu, primeiro, a estranheza daquele corpo de pele lisa, desnuda de pelos, mas encabelado aqui e ali. Depois, os pés também nus, descalços de cascos, pisando no chão com os dedos abertos, flexíveis. Admirou as duas pernas sustenando, sozinhas, o corpo ereto, esbelto. Gostou dos dois braços estendendo-se em mãos opostas, que se abrem em dedos hábeis e se arrematam em unhas, sem agressividade de garras. Experimentou, com prazer, a amplitude da caixa dos peitos com seus foles de respirar.

Descobriu, então, encantado, a cabeça móvel com suas fendas de ver, de ouvir, de cheirar, de provar. Parou al i para melhor gozar Mosaingar através dos sentidos. Percebeu então, com gozo, que o corpo todo se sentia, sabendo bem como e onde estava cada uma de suas parates inumeráveis. Sentiu que Mosaingar era a melhor criação de Nanderuvuçu.

Um dia, Maíra pediu a Mosaingar - que seria sua mãe - que colhesse e provasse uma fruta ali bem na frente. Mas ele bateu na barriga e disse: "Não! Filho que ainda não nasceu não fala!"

Maíra se zangou também. Agarrou os miúdos de Mosaingar e começou a puxar e repuxar para obrigá-lo a obedecer. Afinal, Mosaingar, não suportando a dor, pegou aquela fruta para morder, mastigar e engolir. Reconehceu que era boa, que se podia comer. Logo depois Maíra quis sentir a forma e o cheiro da flor.

Estava Maíra nesses trabalhos de conhecer e provar o mundo dos Antigos quando viu correndo ali, pelo mato, e fazendo caretas engraçadas, um bichinho à toa; esse gambazinho fedorento, o Micura-sarinqüê. Ele achou engraçado, gostou e pensou lgo:

- Aí está quem há de ser meu irmão gêmeo!

Chamou o Micura para dentro do oco da barriga de Mosaingar. Mas Mosaingar não queria que entrasse e se trancava, fechando as pernas, apertando as coxas. O pobre do micura cumprindo a voantade de Maíra subia, subia... Mosaingar gritava que não, batendo em Maíra na barriga e mordendo o micura com a vagina dentada. Maíra perdeu a paciência e teve que quebrar, do lado de dentro, toda aquela dentatura para o irmão entrar. Micura, afinal, entrou e gosto do quentinho lá de dentro. Ficou enrodilhado, olhando para Maíra e Maíra olhando prá ele.

Ali ficaram os dois, conversando e crescendo. Às vezes brigavam. Um dia Maíra reclamou que aquele mundo lá de fora era feio demais, escuro demais... Por isso ele queria voltar atrás, para a morada de Nanderuvuçu. Queixava-se muito, lamentava-se e começou a chorar, dizem. Micura escutava, enrolado no seu cantinho do útero de Mosaingar. Depois disse:

- Esse mundo ai fora é o meu. Não tenho outro. Vou é sasir para fora e viver nele. Vou fazer o que puder. Minha morada é ai. Lá para trás não há nada. Eu não choro, brigo.

Maira olhou para ele, admirado daquela coragem de viver, achou bom e pensou que talvez pudesse melhorar a criação de Nanderuvuçu. E disse:

- Vamos nascer, Micura?

Deu uma volta ínteira no útero de Mosaingar, que se agachou de dor, pensando que já era hora de parir. Pôs a mão no ventre e perguntou:

- Filhos de não sei quem, já vou parir? Veja bem, você nasce sem pai. Não sururuquei com o pênis de Nanderuvuçu. Como é que você vai nascer, se não é filho dele?

Maíra, lá de dentro, respondeu:

- Ora, Mosaingar, nossa mãe, não se importe. Você vai parir dois gêmeos. Não somos filhos de eus. Somos filhos do Velho. Somos os pais do homem que há de ser.

Maíra e Micura nasceram paridos como gente no meio dos mairuns.

Fragmento de "Maíra", de Darcy Ribeiro.

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